top of page

Crítica: "Não Olhe Para Cima" só olha para os Estados Unidos

Não Olhe Para Cima, dirigido por Adam McKay e disponível para assistir online na Netflix, é uma paródia política que ressona bastante com os dias atuais na pandemia de Covid-19: uma dupla de cientistas descobre que um meteoro está prestes a atingir a Terra e isso desencadeia uma onda de negação e medo pela morte iminente.


O filme reúne grandes nomes no elenco, como Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Meryl Streep, Ariana Grande e uma aparição rápida estilo se-piscar-perdeu de Chris Evans. Não Olhe Para Cima concorre ao Oscar 2022 em quatro categorias: Melhor Filme, Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Roteiro Original e Melhor Montagem. Confira a seguir nossa crítica.

Quem viu Vice (2019) já está familiarizado com as “manias” de Adam McKay: interlúdios inesperados, quebras de expectativas, piadas ácidas e ironias regam o seu roteiro. Basicamente são esses elementos que guiam Não Olhe Para Cima, acompanhado por “intervalos” de repercussões nas redes sociais para mostrar a reação do público a cada estágio do filme — uma clara referência a como nossa vida hoje em dia é tão real quanto virtual.


Um aspecto que inicialmente me incomodou foram os cortes rápidos de cena em cena; eu mal tinha digerido a informação de um momento quando o cenário e personagens mudavam na tela assim, no seco. Depois de um tempo, aceitei esse aspecto estilístico. Podemos viajar um pouco aqui e analisar como essa disrupção e velocidade no fluxo da história pode ser um paralelo com o imediatismo da modernidade — a gente mal termina uma conversa no WhatsApp e já vai jogar um jogo no celular, ou ver um filme, lavar louça… Fica tudo “interrompido” e rápido.

Divulgação/Netflix

As semelhanças da trama são evidentes. Temos a presidente Orlean (Meryl Streep), uma clara política ignorante que só se interessa por ciência quando é conveniente para sua trajetória política — oi, alguém disse Bolsonaro? Temos críticas ao modelo de heroísmo estadunidense, às fake news, aos posicionamentos rasos de celebridades (tipo Ariana Grande interpretando Ariana Grande), ao discurso de ódio motivado por política… Não Olhe Para Cima é basicamente um espelho da humanidade atual.


Os personagens principais (lê-se: Kate Dibiasky e Randall Mindy) tinham profundidade e não estavam limitados apenas às comparações políticas da trama. Adam McKay fez um bom trabalho ao desenvolver o lado mais humano e de sofrimento da tragédia, principalmente quando no aqui e agora nós lembramos nossa quarentena — os dias que passamos vendo lives, fazendo calls com os amigos… E muito provavelmente você, que está lendo isso aqui, perdeu (ou conhece alguém que perdeu) um ente querido para a Covid-19. Meus pêsames.


Num momento tão pesado de dor, também é inevitável lembrar o ódio. Vimos as pessoas reagirem com raiva ao serem obrigadas a usarem máscaras faciais para sobreviverem, porque infelizmente a ciência passou a ser um instrumento político. Não Olhe Para Cima aborda, em parte, esse lado da disputa de ideologias em campos que deveriam ser “neutros”, por assim dizer. Contudo, o roteiro peca numa questão: presidente Orlean.

Divulgação/Netflix

Meryl Streep interpreta com maestria uma presidente ignorante, envolvida em escândalos e preocupada com sua carreira eleitoral. Ela é o Trump, ela é o Bolsonaro, nós entendemos. A questão é: como ela chegou ali? Isso nunca é abordado no filme. Sim, muitos eleitores caíram em fake news (que não surgiram magicamente por aí, diga-se de passagem) e, por falta de pensamento crítico, votaram neles na última eleição.


No entanto, não podemos ignorar que ambas candidaturas também foram extremamente fortalecidas pelo discurso de ódio (mascarado como uma suposta “liberdade de expressão” pela extrema-direita). Não Olhe Para Cima não menciona como o pensamento conservador também está presente no nosso dia a dia com a rejeição de pautas de direitos humanos, por exemplo, e acredito que essa é uma grande falha do filme. A desinformação funciona principalmente porque as pessoas já têm uma “tendência” a acreditar no boato, seja por questões ideológicas ou por falta de conhecimento.


Para um longa que se propõe tanto a falar sobre desinformação e suas consequências (afinal, foi assim que as ciências perderam sua credibilidade no mundo atual), parece que se esqueceram de falar sobre isso. Aparentemente, Adam McKay achou mais prioritário trazer tridimensionalidade ao personagem de DiCaprio com um enredo de traição do que incluir esse panorama político no filme. Tudo bem.

Divulgação/Netflix

O final explicado de Não Olhe Para Cima é basicamente: vai todo mundo morrer se ignorar a ciência. Podemos transferir essa mensagem para a vida real e ver que, sim, essa é a realidade. Estamos num ciclo cansativo na pandemia de afrouxar medidas antes da hora (porque queremos taaanto voltar para o normal de antes) só para voltar a enrijecê-las logo em seguida porque a falta de preparo causou uma nova onda de Covid-19.


A cena pós-créditos se refere a um alerta do Dr. Randall Mindy sobre os riscos de ir a um planeta alternativo. Mais uma vez, a ciência foi rejeitada e isso resultou no fim das pessoas ignorantes (e privilegiadas por estarem naquela nave de fuga). A cena é engraçada? Sei lá. O final me deixou depressiva por sua verossimilhança, mas respeito o senso de humor ácido de Adam McKay. Contudo, o que não respeito é o estadunicentrismo (essa palavra existe?) do longa, que me deixou revirando os olhos várias vezes.


Vai aqui um final que eu pensei: americanos estão na central da Nasa, nervosos para saber se a operação vai dar certo. Até que… Os chineses “brotam do nada” e explodem o meteoro e salvam todos. Por que são justamente os Estados Unidos que devem salvar todo mundo? A gente vê essa farsa perpetuada nos filmes de Hollywood por motivos óbvios (afinal, soft power continua sendo dominação) e Adam McKay tinha a faca e o queijo na mão para criticar esse complexo de Super-Homem do jeito ácido que ele tanto gosta.

Divulgação/Netflix

Você pode contra-argumentar que a China não é “evoluída” o suficiente para se propor a fazer o mesmo que os Estados Unidos em Não Olhe Para Cima, e eu posso te recomendar algumas leituras para conferir como a corrida tecnológica entre China e Estados Unidos está cada vez mais acirrada. É fato que eles estão ameaçados pela China e existe a possibilidade de mudança na hegemonia mundial no futuro. Longe de mim dizer que isso é bom ou ruim; eu só acho que deveríamos parar de sermos tão etnocêntricos assim.


(Você francamente acha que Trump queria banir o TikTok do país apenas por questionamentos de privacidade? Curioso isso acontecer quando o app estava começando a dominar os EUA… Curioso isso acontecer quando apps americanos, como o Facebook, estão em queda… Curioso o pretexto de privacidade para banimento quando foi comprovado que o Facebook tinha feito coisa muito pior com a Cambridge Analytica… E curioso que o Facebook nunca foi ameaçado de banimento, você não acha?)


E o que temos no final? Não Olhe Para Cima apenas menciona de passagem a tentativa (falha) de intervenção de outros países “emergentes”, mantendo os Estados Unidos no centro da trama. Aparentemente, existe um limite para o quão crítico o americano padrão consegue ser — afinal, no fim do dia os Estados Unidos e a Europa seguem sendo o centro do Ocidente, enquanto nós, latino-americanos, ficamos de escanteio. Meu veredito? O filme é interessante e vale a diversão, mas não justifica todo o hype porque não corresponde à nossa realidade brasileira com mais de 655 mil mortes por Covid-19 e uma eleição arriscada este ano.

____




Quer saber nossas impressões sobre diversas obras das mulheres na cultura? Cinema, música, literatura, teatro e muito mais. Tudo isso, duas vezes por semana, na categoria “Crítica”.

bottom of page