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Foto do escritorBeatriz Vianna

Resenha: "A vida mentirosa dos adultos" e a geografia dos afetos

A gente quando é criança tende a achar que nossos pais são seres perfeitos, intocáveis, a personificação de Deus na terra. Atravessados, ou não, por valores religiosos e demais crendices, o fato é que, desde cedo, aprendemos a idealizar as figuras adultas que nos cercam. Mas o ciclo logo é rompido quando se ganha um pouco mais de consciência e autonomia, e o que não é visto passa a ser objeto de cada vez mais atenção. São fases naturais da vida e que Elena Ferrante, cuja identidade segue mantida a sete chaves, retrata tão bem em "A vida mentirosa dos adultos" (Intrínseca, 2020), que acaba de virar uma série de seis episódios na Netflix, onde também pode ser encontrada a adaptação de A filha perdida (Intrínseca, 2016).



Ferrante tece uma trama simples, ambientada, novamente, em Nápoles, mostrando, dessa vez, os contrastes e embates sociais de uma cidade dividida. Em linhas gerais, o livro é sobre uma menina de 12 anos chamada Giovanna que, ao ouvir o próprio pai lhe chamar de feia e ainda compará-la com a tia Vittoria — um ser desprezível e até então desconhecido para ela —, passa a questionar toda a vida que tivera até ali. Ponto.



Mas é daí que se inicia uma jornada de autoconhecimento e amadurecimento, acompanhada de dramas familiares típicos de parentes ressentidos uns com os outros. Sentindo, portanto, uma necessidade absurda de conviver com aquela mulher “na qual feiura e maldade coincidiam perfeitamente”, a menina decide, pela primeira vez, confrontar os pais amados e visitar a tia, cujo humor imprevisível escondia uma série de amarguras do passado.



Giovanna fura a bolha de filha de uma classe média intelectual em ascensão na medida em que cruza a cidade até a região menos nobre para conviver com a inimiga mortal dos pais e seu núcleo social, desmascarando o preconceito social enraizado na fala de seus progenitores. É então que vemos a jovem garota descobrir que o mundo dos adultos não é exatamente o que parece; seus pais podem errar, trair e contar mentiras; sua tia pode ser mais sensível do que parece, embora isso não faça dela menos santa; suas amigas podem lhe aflorar desejos inefáveis, assim como homens podem ser babacas, não importa idade e grau de parentesco.



Mas, para além do que ela é capaz de descobrir sobre os outros, a beleza do livro está no que ela pode descobrir sobre si mesma conforme fica mais velha. Sua jornada de amadurecimento é tudo, menos linear — destaco aqui o processo de descoberta da própria sexualidade, ora reprimida, ora estimulada, e que assim fora até Giovanna entender que também pode ter desejos e que nada, nada mesmo, vem acima do próprio prazer. Com um final aberto à inúmeras reflexões, uma única coisa é certa: sua liberdade.


Nota: 5/5.


Sobre a série


Pouco mais de um ano após a acertada adaptação de "A filha perdida" protagonizada por Olivia Colman, a Netflix disponibilizou a minissérie de outro livro mais pop da Ferrante. Dessa vez, presenciamos um elenco essencialmente italiano, mais à vontade com as belíssimas paisagens exibidas nas telas. Não bastasse isso, a criadora do universo polarizado de Giovanna e Vittoria esteve entre os roteiristas, sendo mais um indicativo de que a produção tinha tudo para ser boa. Mas não foi. Trata-se do raríssimo caso em que fidelidade demais à obra original pode ser prejudicial. Por mais que falas, gestos e expressões ganhem a reprodução mais literal possível, o não dito, o implícito, o subjetivo, se perde no meio do caminho. E na literatura de Ferrante isso é tão importante quanto.


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