Crítica: o que vem depois do beijo na psicodélica "Boca a Boca" (Netflix)?
Alguns dos maiores sucessos da Netflix são filmes e séries produzidas para o público teen. Estava na hora de ter uma produção brasileira do estilo também, verdade? "Boca a Boca" chegou ao catálogo da plataforma para suprir essa necessidade. E, melhor, com muita qualidade!
Disponibilizada em 17 de julho, ela chegou a figurar no TOP 10 da Netflix Brasil após o seu lançamento, mas ainda não recebeu a repercussão que merece. Inclusive, ganhou pouca promoção da própria plataforma. E se você ainda não deu uma chance a produção, esse é o momento!
É um misto de ficção científica, suspense e drama que vale a pena conferir. Criada por Esmir Filho ("Alguma Coisa Assim"), que divide a direção com Juliana Rojas ("As Boas Maneiras"), a série se passa em uma cidade interiorana e rural chamada Progresso, que parece estar muito isolada do mundo, onde o controle social dos adultos sobre os adolescentes é rígido (e ultrapassado, vamos deixar claro). De “progresso” não tem nada e colocar esse nome na cidade não foi em vão, sendo um dos muitos paradoxos e disrupções que a série apresenta.
Depois de uma rave clandestina na floresta, organizada por uma seita misteriosa, com direito a muitos beijos, sexo e drogas, uma doença se espalha pelos jovens da cidade, começando pela Bel (Luana Nastas), uma das mais populares. Todos passam a se perguntar: “que infecção é essa?” É nesse detalhe que se encontra o mistério da história. A única coisa que se sabe é o fato de ser transmitida pelo beijo, causando alucinações, roxidão nos lábios, dilatação dos olhos, perda de sentidos e sentimentos. Meio zumbi, sabe?
Quem nos ajuda a desvendar esse mistério são os protagonistas da história: os amigos Chico (Michel Joelsas), o novato da cidade; Alex (Caio Horowicz), filho do grande pecuarista da região; e Fran (Iza Moreira), doce menina que vive e trabalha com a mãe na fazenda. Três perfis diferentes que refletem a pluralidade do elenco. Inclusive, a variedade de sotaques chama atenção ao se pensar que estamos em uma pequena cidade ficcional do interior.
Entre uma descoberta e outra nas investigações, os jovens precisam encontrar a si próprios. São dilemas comuns na vida de adolescentes e postos na série, de maneira natural, que a narrativa ganha mais fôlego e se torna mais atraente. É um acerto falar de sexualidade, conservadorismo, corrupção, consumo consciente e relações familiares e laborais.
Apego aos detalhes no roteiro e direção
É uma série que tem tudo o que uma trama teen precisa ter, mas sem situações forçadas. Até por que falar de uma epidemia nem é algo tão ficcional, verdade? Ela chama atenção por manter o suspense sem sustos aleatórios ou gritos descabíveis. O suspense está nos paradoxos entre o digital e o agrário, além do ineficiente controle conservador dos pais e da busca pela liberdade individual dos jovens.
Enquanto muito da trama é desenvolvida pela tela dos celulares e redes sociais dos jovens, o cenário de fundo é rural. A direção é inteligente ao propor esses contrastes, inclusive na fotografia. A estética futurista (em um cenário agro e pacato) é um dos pontos altos da série, sendo também bem subjetiva, em tons neons e com explosão de cores, sobretudo em cenas dos jovens nas raves psicodélicas ou durante as alucinações.
A trilha sonora também é interessante, sendo madura e alternativa, que vai de Letrux a uma versão tecno de “Boi da Cara Preta”. Foi definida pelo diretor como “synth-pop-rural” e deve ser lançada no Spotify em breve. Outro ponto relevante é a inclusão das músicas de maneira diegética, ou seja, dentro da ação da cena. Acontece muito na relação de Chico com o seu fone de ouvido.
Elenco jovem afiado
O trio de protagonistas mostra a força dos atores jovens brasileiros, com destaque para Michel Joelsas (“Que Horas Ela Volta?”). Na pele do recém-chegado Chico, ele leva carisma ao personagem que é o mais livre no roteiro, sem medo de se jogar nos seus desejos e medos.
Caio Horowicz (“Hebe”) e a novata Iza Moreira também se destacam. Caio, que interpreta Alex, se entrega nas cenas conflitivas com a sua família e em cenas românticas com Esther Tinman, que interpreta Manu. Já Iza, que dá vida a Fran, se destaca nas cenas dramáticas com a sua mãe, interpretada por Grace Passô, que rouba as cenas para si.
Além de Passô, a veterana Denise Fraga é outro grande destaque do elenco adulto como Guiomar, a diretora durona do colégio da cidade, mas também frágil em relação à criação de sua filha Manu.
Já Thomás Aquino (“Bacurau”) constrói um personagem que transita entre a sensibilidade no romance com o jovem Chico e a brutalidade no trabalho da fazenda. Esse bom desempenho do elenco é facilitado pelo arco narrativo muito bem construído dos personagens.
Boca a Boca é maratonável
São apenas seis episódios de 40 minutos em média, o que dá dinamicidade. Você pode maratoná-la em apenas um final de semana. Apesar dos dois primeiros episódios não prenderem tanto, conforme as subtramas de cada protagonista vão sendo mais exploradas, a série se converte em uma história irresistível.
No final, o grande mistério da doença é descoberto, mas sem muitos detalhes. Além disso, as verdadeiras relações da infecção com a seita, a fazenda, o desejo de liberdade e a corrupção também vêm à tona. Quem é o verdadeiro culpado? Por outro lado, feridas abertas no último capítulo permanecem abertas e dão brecha para uma segunda temporada, que ainda não foi confirmada pela Netflix Brasil.
O último capítulo, por sinal, merece atenção. Ele é muito movimentado por ter muitas questões para solucionar. É tão rápido que merece plena atenção do espectador para não perder os detalhes. Mas as chances de você querer mais são grandes porque a última cena parece revelar um novo mistério.
Como um todo, a obra se mostra muito inteligente. Apesar de produzido antes da pandemia do coronavírus, ela tem o timing perfeito de lançamento, mas usa isso apenas como pano de fundo para criticar comportamentos humanos e propor reflexões. Em entrevista ao Metrópoles, o diretor Esmir Filho revelou que a trama “é sobre o vírus do conservadorismo”.
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