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Crítica: Cultura do estupro e da impunidade em “Bela Vingança”

Sabe aquele filme que você vê o título e ele não desperta nenhum interesse e daí que você assiste fica pensando: “Como eu não assisti isso antes?”. Prazer, “Bela Vingança”. O título brazuca para o longa “Promising Young Woman” – algo como “Jovem Promissora”, em português – deu uma vibe completamente de terror trash da sessão da tarde. Por isso, mesmo com a indicação ao Oscar, estava um pouco reticente para assistir o filme.


Bem, felizmente, tudo o que o filme precisou para me convencer de que eu PRECISAVA assisti-lo foi um trailer com um pouco mais de 1 minuto. Ao som de uma versão de “Toxic”, de Britney Spears, no violino, o trailer mostra pontos centrais que amarram a história e fazem o filme que mistura aspectos do terror e drama se tornar tão importante para discutir questões como assédio sexual, a cultura do estupro e a posição que as mulheres ainda ocupam na sociedade.




Com roteiro e direção de Emerald Fennell, o longa conquistou a audiência por tratar de assuntos de extrema importância com um humor ácido e nenhuma metáfora. O filme é o que é. Você sabe o que aconteceu com Nina, amiga de infância da protagonista, durante uma festa na faculdade. E tudo isso parece familiar porque nós já escutamos essas histórias. Elas estão nos jornais, nas redes sociais, muitas vezes bem ao nosso lado.


É fácil se conectar com o filme justamente porque ele fala abertamente sobre algo que não é ficção. Principalmente para o público feminino, o roteiro de Fennell é quase como um lembrete de que ainda vivemos em uma sociedade que coloca as mulheres em uma posição de inferioridade em todos os aspectos – tendo em mente que o filme ainda fala e coloca como destaque a história de duas mulheres brancas e ricas.


Carey Mulligan, Emeral Fennell e Laverne Cox durante as gravações do filme.

De fato, o trabalho da diretora e roteirista mereceu o reconhecimento que recebeu na edição de 2021 do Oscars. Fennell faturou a estatueta na categoria de Melhor Roteiro Original e ainda foi indicada à Melhor Direção – que teve a chinesa Chloé Zhao como vencedora. Em uma edição marcada pela diversidade, ver duas mulheres sendo premiadas falando sobre assuntos socialmente relevantes foi de extrema importância e nos faz sonhar de que esse ano não tenha sido apenas uma exceção para a história da premiação.


Obs: a crítica contém alguns spoilers leves, nada que atrapalhe a sua experiência, mas fica à sua escolha seguir a leitura :)


Cultura do Estupro dentro e fora do filme


Embora o filme seja uma representação bem fidedigna da vida real, é possível ver onde a história passa a se misturar com a ficção e seguir rumos que a levam para o lado mais ácido e irreal da história. Na verdade, eu acho que o longa coloca em prática a idealização de várias mulheres a se depararem com um caso de estupro. A raiva, necessidade de vingança e desespero de Cassandra (Carey Mulligan) em tentar se redimir com a sua amiga após ela ter sido vítima de um estupro em uma festa na faculdade.


Cassandra e a mãe da sua amiga Nina conversando.

O sentimento de culpa que Cassandra carrega por não ter ido na festa com a sua amiga e não ter previsto o suicídio da mesma, faz com que ela comece a agir sozinha para “dar uma lição aos homens”. É com esse pensamento em mente, que ela começa a ir em casas noturnas toda semana para se fingir de bêbada e ver como os homens vão agir. Bem, logo na primeira cena a gente já vê que uma mulher sozinha e embriagada em uma festa chama a atenção de “homens preocupados”.


A ação de Cassie funciona como um teste. Ela espera esses homens chegarem, oferecerem ajuda e observa até onde essa “ajuda” é sincera. Como podemos imaginar, na maior parte dos casos (para não dizer todos) essa ajuda vem acompanhada de segundas, terceiras e até quartas intenções. E é aí que ela revela que tudo não passava de uma encenação. Ver isso me deixou meio apreensiva no filme. Embora pareça uma boa solução e, na história, os homens se retraem e basicamente deixam ela sair após se assustarem com a revelação e ela consegue passar a sua lição.


Cassandra em uma balada na primeira cena do filme.

Isso me fez pensar o que aconteceria se essa situação fosse real. Se eu, por exemplo, decidisse sair por aí tentando dar uma lição de moral aos homens. E é nesse ponto que o filme abandona completamente a realidade – o que não é, de forma alguma, um problema. Enxergar esse distanciamento da realidade é fundamental para a gente ver que o filme não passa de uma representação da realidade (o que é normal) e que essa questão dificilmente poderá ser resolvida da forma como a personagem principal resolvia no filme.


Pensando nisso, eu deixo aqui uma indicação se você quer assistir algo que fale mais sobre essa cultura do estupro em universidades. O documentário “The Hunting Ground” (2015) aborda a questão direcionando os seus relatos para o que acontece nas universidade estadunidenses, mas é uma forma de entender melhor esse universo e como ele ainda representa muito perigo para as mulheres. A música “Till it Happens to You”, produzida e interpretada pela cantora Lady Gaga é trilha do filme e ganhou uma indicação ao Oscar na categoria de Melhor Canção Original em 2016.



O que esperar do filme?


Eu acho que para assistir e gostar desse filme, realmente, você precisa entender a dor que está sendo representada. Eu vi na internet várias pessoas, na maioria homens, dizendo que não entenderam o hype sobre o filme e que ele chegava a ser simples demais para tanto estardalhaço. E, sinceramente falando, realmente não dava para esperar tanta empatia das pessoas que não sofrem com esse medo constante rondando os seus pensamentos.


Não estou nem dizendo que eles estão certos ou errados – embora estejam errados – é só que realmente não dá para entender. No último ato do filme, Cassandra confronta, depois de anos, o estuprador da sua amiga e o grupo de amigos deles que estavam presentes na noite e protagoniza uma das cenas mais marcantes do filme (e arrisco dizer que uma das que ficou mais famosa).


Nela, Al Monroe (Chris Lowell), diz que o maior medo de um homem era ser acusado de ter cometido um estupro e Cassandra apenas questiona qual ele achava que era o maior medo de todas as mulheres. São esses detalhes do roteiro e da composição de toda a história que transformam o filme em algo que ultrapassa as barreiras da tela e criam conexão direta com o público que ele deseja atingir, as mulheres.


"Você pode imaginar qual o pior pesadelo de todas as mulheres?"

Então mesmo que a história tenha um quê bem marcante de ficção, ela te faz querer que fosse real. Te faz imaginar se realmente existisse alguém que pudesse ter um caderninho e fosse anotando cada homem que ela confrontou. E te faz ter medo também. Medo do que pode acontecer com a Cassandra e o que ela vai encontrar no final da sua jornada.


É um filme surpreendente para assistir e se conectar, sentir raiva, felicidade, decepção e muita (mas muita) vontade de ver as coisas mudando – mesmo sabendo que não vão. Ele ainda não está disponível em nenhum serviço de streaming, mas você pode baixar ele por vias ilegais (rs) e o Telecine já anunciou que o longa entra para o catálogo ainda este ano. Então se você quiser esperar, já sabe onde encontrar o filme para assistir.



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Quer saber nossas impressões sobre diversas obras das mulheres na cultura? Cinema, música, literatura, teatro e muito mais. Tudo isso, duas vezes por semana, na categoria “Crítica”.

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