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Vamos polemizar: as diferenças entre a comunicação feminina e masculina

Você já notou que a maioria das assistentes digitais são femininas? Alexa, Siri, Bixby, Google Assistente… Também existem alguns exemplos nacionais, como a BIA do Bradesco e a Joice da Oi. Há vários motivos para isso — um deles sendo a ausência de mulheres nas equipes que criaram esses serviços —, mas todos se resumem numa questão: machismo. Faz anos que relatórios alertam para o perigo de perpetuar a imagem da mulher serviçal com o lançamento de mais e mais assistentes femininas, trazendo o risco da própria IA sofrer assédio na mão de usuários homens.


Algumas medidas foram tomadas em resposta às críticas, e hoje em dia boa parte das assistentes mais usadas do mercado têm a opção de voz masculina, mas… A voz feminina ainda prevalece, o que indica que é preciso dar um passo além. A Siri feminina deixou de ser a configuração padrão em 2021, dando a escolha ao usuário: você deseja uma assistente mulher ou homem? No ano seguinte, a Apple lançou uma voz “não-binária” e supostamente livre de estereótipos de gênero. O desafio não foi apenas gerar um tom que não seja nem feminino, nem masculino, mas também mudar o vocabulário da assistente. Por quê, você pergunta? Porque mulheres e homens não se expressam da mesma forma.

Mulheres devem aprender a falar como homens


Esse entretítulo aí em cima foi a minha primeira anotação de ideia deste “Vamos Polemizar?” O pensamento me surgiu após passar muito perrengue trocando e-mails com a equipe de TI de uma empresa para resolver um problema técnico. Eu e minha chefe enviamos mensagens gentis, repletas de exclamações educadas e “obrigadas” acompanhados de emojis — tudo isso para não soarmos grosseiras. Eis que minha chefe pede ajuda a outro funcionário para intervir e terminar com essa confusão, e ele surge na conversa com um e-mail do tipo:

boa tarde, o que mais precisam para dar acesso? Informaram que necessita de permissão??? Nos ajude por favor

Dane-se a pontuação certinha, as letras maiúsculas, os ! salpicados aqui e ali para efeito de sutilidade. O cara mandou um e-mail de trabalho com ???; isso é o equivalente a um xingamento em corporativês. Aquele bando de interrogações rudes indicava a frustração que eu e minha chefe sentíamos, mas não tivemos a coragem de expressar.


E um homem só chegou lá e escreveu meia dúzia de linhas (sem um mísero “agradeço desde então”), e adivinhem só? Pois é, a assistência técnica resolveu o nosso problema. A despedida com “nos ajude por favor” ficou na minha cabeça. O “por favor” está ali para amenizar a mensagem, porém dá para notar bem que o “nos ajude” está no imperativo — apesar de ser um pedido, ele traz um tom de ordem. Eu primeiro pensei “nossa, quero terminar todo e-mail meu com essa frase”, só que não, eu não tenho a coragem de soar grosseira assim e me impor dessa forma.


E é por isso que eu decidi fazer esta pesquisa: para descobrir de onde vem esse meu bloqueio.


Afinal, homem e mulher falam diferente mesmo?


As diferenças entre a comunicação de homens e mulheres são estudadas há séculos em artigos que refletem o progresso das pautas de gênero e o combate ao machismo. Por exemplo, em 1922 o linguista dinamarquês Otto Jespersen escreveu que mulheres são “pouco originais” em seu discurso e, se um homem fosse forçado ao estilo de fala de uma mulher, ele ficaria rapidamente entediado por conta da natureza da conversa feminina. Como podemos perceber, a visão inicial era de que mulheres seriam linguisticamente deficientes, quando comparadas a homens.


Contudo, análises mais recentes mostram que mulheres, em geral, possuem pronúncia mais correta e seguem a gramática com mais frequência do que os homens. Elas também usam mais advérbios de intensidade, diminutivos e adjetivos no dia a dia, o que indicaria a maior sensibilidade ao ambiente e expressão emotiva da perspectiva feminina.


Além disso, há várias marcas na fala de mulheres que denotam educação e uma espécie de “colaboração”, como se elas levassem sempre em consideração a opinião de outros na conversa. Verbos no imperativo costumam ser evitados e, mesmo ao dar ordens, palavras como “talvez” são empregadas para amenizar a sensação autoritária. Para efeito de comparação, uma mulher falaria “você poderia me ajudar, por favor?”, enquanto um homem adotaria uma abordagem mais direta com “por favor, me ajuda” (vide o famigerado “nos ajude por favor” do e-mail que mencionei logo acima).


A linguista estadunidense Robin Lakoff, especialista em questões de gênero, analisa que mulheres respondem perguntas com um tom inseguro (mais agudo) mesmo quando têm certeza do que estão falando. Segundo ela, a fala feminina traz um efeito de ausência de confiança e poder, sendo que o discurso masculino é o oposto disso — seguro, autoritário e severo. Mas de onde vem essa falta de confiança? Quando exatamente nós, mulheres, aprendemos a falar assim?


“Isso não é coisa de mocinha”


Comunicação é uma habilidade apreendida. Ou seja, não basta ter uma boca funcional e pregas vocais; devemos estudar e aprender para praticarmos, de fato, a comunicação (o ato de transmitir uma informação e ela ser recebida corretamente por outro). Aprendemos ao observar as pessoas e modelamos nosso comportamento de acordo com essas análises, que são afetadas pelo contexto em que vivemos. (Lembrete: não vou abordar aqui diferenças culturais, regionais nem socioeconômicas. Vamos focar em gênero.)


Como diz Simone de Beauvoir, não se nasce mulher, torna-se mulher. Assim como aprendemos a linguagem e a nos comunicar, aprendemos a agir de forma “feminina” — ou, pelo menos, segundo a expectativa que o patriarcado tem de pessoas com útero. E esses dois aprendizados acontecem ao mesmo tempo e se sobrepõem na nossa criação. O que acontece quando uma criança cresce rodeada de comentários como “menina não fala palavrão”, “não seja mandona”, “se comporte feito uma mocinha”? Anos mais tarde, ela resulta numa mulher que não dá ordens diretamente, que não impõe sua voz mesmo quando crê no que diz. Numa mulher que não é escutada, mesmo quando fala.


Enquanto uma menina confiante tem mais chances de ser isolada do seu grupo de amigas por “se achar demais”, meninos estão acostumados a brincar em grupos com relações desiguais de poder. Assim, desde pequenos eles aprendem a se desafiar entre si (de maneira amistosa) e a mostrar suas habilidades e conhecimentos para que “subam” de status dentro do seu círculo social. Essas realidades diferentes, na infância, são bem transparentes na comunicação feminina vs masculina.


Mulheres são mais colaborativas em sua fala, aproveitando opiniões de outros e dando sinais de afirmação. A conversa flui de maneira agradável, em que todos estejam no mesmo “nível”. Isso bate com a imagem criada da feminilidade de que mulheres não devem ser desagradáveis nem insensíveis. A linguista Deborah Tannen observa que elas priorizam dar apoio, em vez de imporem sua influência em conversas, porque gostam de estabelecer intimidade e dar a impressão de que todos os envolvidos são iguais e próximos:

“Para mulheres, uma parte importante da vida consiste no esforço de desenvolver e preservar intimidade. Intimidade é um fator importante num mundo de conexões onde indivíduos negociam redes complexas de amizade, minimizam diferenças, tentam chegar a um acordo e evitam dominâncias aparentes. Mulheres tendem a pensar nas interações sociais de maneira não-hierárquica, e evitam assumir o papel de expert numa conversa com a intenção de minimizar a distância social entre os participantes.”

Já os homens têm uma abordagem competitiva, em que se estabelece dominação e relações assimétricas de poder, valorizando aspectos como independência e competência. Jennifer Coates explica, no livro Men Talk (2003), que homens encaram conversas como negociações, então é natural para eles que alguém tenha vantagem, de forma que não se sentem desconfortáveis em serem “superiores” e autoritários.


Análises de conversas entre homens e mulheres evidenciam a diferença entre essas abordagens. Homens interrompem mais outras pessoas, o que é um sinal típico de abordagem competitiva e disputa por fala. Por outro lado, mulheres geralmente são mais pacientes ao serem interrompidas e esperam o outro concluir o raciocínio, mesmo quando desejam muito dizer algo.


Elas também costumam incentivar outros a participarem da conversa, mostrando que querem realmente ouvir, ao passo que homens interrompem porque querem ser ouvidos. Eles estão confortáveis com a ideia de assumirem monólogos e serem os únicos a falar, porque dá a oportunidade de agirem feito especialistas e ganharem autoridade — e, consequentemente, respeito.


A abordagem colaborativa das mulheres incita o compartilhamento de informações, discussões de ideias e conforto. A veia competitiva masculina traz soluções, conselhos (lê-se: ordens) e até mesmo sermões (ou seja: esporro do tipo “eu-estou-certo-e-você-está-errado”). Agora fica a pergunta: como é que isso aparece no ambiente de trabalho?


O lugar da fala da mulher no escritório

Mulheres recebem menos promoções e menos aumentos, além de serem minoria em cargos de liderança. Some a esses fatores tudo o que comentamos até agora sobre linguagem e não será difícil compreender os desafios da fala feminina no mundo corporativo. É isso que acontece quando não se é ensinado como se valorizar, como apresentar suas competências (sem se sentir arrogante por isso), como opinar e impor sua visão.


Funcionárias não só se silenciam por não sentirem firmeza em se expressar como, ao falarem, não costumam ser ouvidas. Pesquisas com grupos focais revelam que a opinião de uma mulher pode influenciar um grupo apenas se ele tiver maioria feminina. Isso não quer dizer que mulheres não têm ideias boas; muito pelo contrário: em geral, os grupos com conclusões iniciadas por mulheres apresentaram maior índice de satisfação justamente por conta da abordagem colaborativa (em detrimento da tal da “competitividade masculina”).


No entanto, a colaboração motivada pelas mulheres pode ser uma faca de dois gumes. Uma das marcas linguísticas desse estilo é usar a primeira pessoa do plural ao sugerir alguma ação ou até mesmo para dar ordens (ex.: “nós podemos fazer X…”). Alguns relatórios indicam que líderes mulheres têm falas mais “suaves”, que são bem-recebidas por seus subordinados e ajudam no bem-estar do funcionário. Por outro lado, pessoas de fora podem encarar essa dinâmica com maus olhos, como se a superior fosse leniente.


Numa das dinâmicas observadas, após uma mulher apresentar uma ideia, um dos participantes homens dominou a discussão em torno dela. Ao ser questionada pela mediadora por que não reivindicou crédito pela sugestão, a mulher respondeu que achava que seria autopromoção demais dizer algo óbvio tipo “essa ideia é minha”.


Só que devemos ser realistas: numa empresa, recebe promoção o funcionário que se destaca. Como dizem no LinkedIn, “quem não é visto não existe”, então conduzir reuniões e conversar com superiores são atitudes importantes para definir aumentos. Homens, com sua abordagem aparentemente mais assertiva, podem roubar o crédito de mulheres mesmo que sejam menos competentes do que elas.


E aí entra um detalhe bem importante: líderes costumam recompensar funcionários com linguagem semelhante à sua própria. Ou seja, um chefe homem (como são, em sua maioria) tem mais facilidade em reconhecer o merecimento de outro homem do que de uma mulher.


Fale como uma mulher


Eu confesso que minha abordagem inicial para esse texto era fechar com um parágrafo lindo de conclusão sobre como mulher é maioria no ensino superior e estamos conquistando cada vez mais espaços corporativos, então devemos parar de falar cheias de dedos e adotarmos a linguagem “masculina”, só que… É, eu mudei de opinião depois dessa mini pesquisa.


Não existe evidência de que a abordagem colaborativa das mulheres no ambiente de trabalho seja prejudicial ou menos qualificada do que a atitude competitiva dos homens. Na verdade, é justamente o oposto: mulheres em cargas de liderança são capazes de engajar mais os funcionários, o que pode gerar benefícios como a economia de alguns milhões de dólares com o aumento de produtividade da empresa.


Outro fator a se considerar: nossa linguagem é nossa identidade. A cada escolha de gíria, de termo, de tom… Contamos um pouco mais de quem somos, do que pensamos, de como encaramos a vida. Por isso que eu não posso simplesmente fechar esse post com algo tipo “mulheres devem falar mais como homens” — até porque eu mesma já percebi que isso não funciona na prática comigo.


Não quero me impor sem necessidade, não quero estabelecer relações de poder. Gosto de compartilhar ideias, ouvir o que os outros têm a dizer. Me identifico com a abordagem colaborativa e devo levá-la para a minha vida, mas tiro de lição disso que devemos ficar alerta para saber quando ser mais ríspida para nosso próprio bem.


Não devemos mudar a maneira com que falamos. Devemos mudar o conceito de “autoridade” e “funcionário competente”, e fazer com que falas diferentes sejam ouvidas no ambiente de trabalho. Uma líder gentil pode ser tão habilidosa quanto um líder conservador e, com o debate da saúde mental ganhando importância cada vez mais, tenho esperança de que um dia (em breve) concordaremos todos que ordem não deve ser sinônimo de tirania.

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A categoria "Vamos Polemizar?" traz assuntos do cotidiano com outras visões e questões. O objetivo é entender melhor alguns sensos comuns dados como verdade por tantas pessoas.


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