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Vamos Polemizar: por que devemos levar as fanfics a sério

Fanfic (ou fanfiction) originalmente significa ficção de fã e se refere às histórias escritas por fãs e baseadas em algum livro, série, filme etc. Contudo, a palavra terminou virando uma gíria na Internet e ganhou novas nuances, como sinônimo para histórias cheias de clichês e mal escritas, ou para anedotas pouco verídicas.


Como a fanfiqueira experiente que sou, fico zero surpresa com o novo significado pejorativo do termo. Se engana quem acha que fanfic é um fenômeno recente — estipula-se que ele surgiu por volta dos anos 1970 com os fãs de Star Trek — e, desde que a Internet é Internet, as fanfics não são bem recebidas por pessoas de fora do nicho.


Por isso, a ideia deste Vamos Polemizar é desmistificar essa prática e mostrá-la por um lado mais revolucionário porque — pasmem — escrever fanfic é, sim, um ato de resistência. Conheça a seguir cinco pontos muito importantes sobre o “fazer fanfic” que poucas pessoas conhecem.

Fanfic acolhe minorias


Os estudos de fãs na academia luta há anos para definir uma razão para as pessoas gostarem tanto de participar de fandoms. Há várias teorias e perspectivas, mas a minha favorita é que, ao se denominar fã de algo, nós podemos construir nossa identidade e ganhar uma noção de “eu”. O fandom, muitas vezes, é encarado como um porto seguro para essa pessoa, em comparação com o “mundo real lá fora”, porque ele oferece estruturas mais receptivas.


Fandoms são, em geral, comunidades muito mais democráticas e “mente-aberta” do que a sociedade capitalista ou, por exemplo, a família tradicional. Com isso, esses grupos costumam atrair minorias sociais (como mulheres, pretes, jovens, gays e assim por diante) justamente por essa liberdade que os permite ser como são sem julgamentos e preconceitos.


E como ocorre a produção de fãs, com fanarts, fanfics etc? Também não há resposta marcada em pedra para esse questionamento, porém podemos seguir a linha básica de que essa é a maneira que encontramos para expressar nosso afeto ao ídolo e ao fandom em si.


No entanto, gostaria de focar em outro aspecto da produção de fã: fanfics e fanarts permitem trazer uma nova dimensão a uma série, livro ou filme. Lembra que eu falei ali em cima que Star Trek deu origem às fanfics? A série de ficção científica mais nerd-macho do mundo gerou histórias gays entre Spock e Kirk, tramas com protagonismo de Uhura (uma mulher preta) e várias outras fanfics que com aspectos “subversivos” sob os holofotes. Isso é dar representatividade a um produto midiático, apesar da sua produção ser masculina e branca em sua origem.

Foto: Reprodução

Escrever fanfic é uma atividade anticapitalista (é sério!)


Qualquer fã de cultura pop sabe bem como o capitalismo pode afetar a arte — todos nós temos aquele lapso de “uau isso é um produto à venda” quando escuta uma música especialmente saturada que parece ter acabado de sair de uma linha de fábrica. Considerando que a arte, pensando de forma idealizada, deveria ser uma expressão íntima e livre, é fato que o capitalismo e a obrigação do lucro termina prejudicando a produção artística. Filmes de super-herói, comédias vazias e outros mais são apenas alguns exemplos de produções que sabemos que existem principalmente pelo prazer de ganhar dinheiro.


Ficwriters (autores de fanfics) são incapazes de ganhar dinheiro com suas fanfics. Isso é determinado por lei devido a questões autorais. Apesar disso, muitas fãs se empenham para encontrar algum tempo livre para escrever aquela história que tanto imagina, para juntar aquele casal que tanto shippa. Fanfic é a produção por afeto na sua forma mais pura possível, dentro do contexto do capitalismo.


O Archive of Our Own (ou AO3 para os mais íntimos), maior arquivo de fanfics do mundo, honra o lado não-lucrativo da produção de fã ao funcionar graças a uma equipe de voluntários — ou seja, ninguém lá ganha dinheiro para fazer o site funcionar. Além disso, o AO3 não apresenta anúncios e se mantém no ar apenas com doações. Detalhe: o AO3 foi criado como crítica a um site de fanfics (fundado, claro, homens) que insistia em adicionar publicidade e monetizar a experiência de ler fanfic.

capitalismo: ninguém produziria nada sem incentivo de lucro autores do ao3 proibidos legalmente de ganhar dinheiro com fanfics: desculpa pelo capítulo curto é que eu escrevi ele quando rompi o apêndice

Fanfic reflete o olhar feminino


É fato que a maior parte da produção no mundo é dominada por homens, então a perspectiva masculina é sempre colocada em foco na hora de contar histórias. Entretanto, não é isso que acontece no mundo das fanfics, onde eles são a minoria. É justamente por essa questão que eu, pessoalmente, não consigo levar a sério críticas feitas por pessoas de fora do fanfiction porque 90% das vezes elas soam como um pretexto para serem machistas.


Não é novidade que ambientes onde homens são raros costumam ser humilhados pelo patriarcado (falamos um pouco sobre isso neste outro Vamos Polemizar sobre “coisas de menina”, e neste AstroTelas sobre o desinteresse masculino na astrologia), então é preciso muita cautela na hora de maldizer as fanfics. Acho que o melhor nesses casos é se perguntar “de onde eu tirei essas críticas?” antes de falar mal.


Voltando à história do fandom de Star Trek: a maioria dos fãs eram certamente homens, mas a produção de fanfics da série é majoritariamente feminina até hoje. As narrativas são escritas por mulheres para mulheres, o que permite desabrochar várias questões femininas e propiciar a expressão livre de jovens meninas. Existem discussões sobre como mulheres encontraram espaço nas fanfics justamente por ser um hobby subestimado e pouco rentável, mas essa questão fica para outro dia.

‘Hot’ é exploração da sexualidade


A suposta hipersexualidade das fanfics é facilmente usada como um dos principais argumentos para se afastar das histórias de fãs. Uma fanfic pode apresentar conteúdo sexual? Com certeza. Esse conteúdo sexual pode ser idealizado e nem um pouco verídico? Sim, claro. Mas o mesmo se aplica à pornografia audiovisual e, ainda assim, ela não atrai tanta rejeição quanto a fanfic mais “pudica”.


Nós já elencamos N motivos para não consumir pornografia aqui no blog, e eu gostaria de abordar algumas problemáticas específicas quanto a essa indústria. É óbvio que o pornô é produzido por e para homens e, como privilegiados, eles garantem aceitação social a esse fenômeno. Além disso, a indústria é marcada por maus-tratos e abusos a mulheres, perpetuando inúmeras violências e, ainda por cima, ela lucra em cima de tudo isso.


Essas questões não aparecem nas fanfics. Elas não visam ao lucro e ninguém ganha dinheiro com elas, e sua produção majoritariamente feminina não depende de violências e coloca em evidência o olhar feminino mencionado acima. Uma das consequências desta última característica, em especial, é que enquanto o pornô é consumido com vistas ao orgasmo, as fanfics costumam trazer arcos de personagens e contexto para alcançar o ápice com a cena sexual.


A terapeuta sexual Helen Wyatt explica, em entrevista à Mashable, que algumas pessoas podem precisar de mais do que apenas estímulo visual para ter prazer, então fanfic é uma opção para ajudar nisso, além de ser um lugar mais seguro para conhecer fetiches etc. Como é esperado de todo conteúdo sexual, é preciso cautela na hora de consumi-lo, mas isso não é exclusivo das fanfics como muitas pessoas dão a entender.

Chloé Zhao | Foto: Reprodução

Ficwriters podem ser futuros autores publicados


Chloé Zhao confessou numa entrevista logo após ganhar o Oscar por Nomadland que ela escreve fanfic há anos. Meg Cabot, autora de nada mais nada menos que O Diário da Princesa, costumava escrever fanfics de Star Wars quando era mais jovem. Produzir fanfic pode ser um exercício valioso de escrita criativa e ensinar os primórdios de redação para futuros autores profissionais.


Fanfics são publicadas em espaços onde é possível que leitores deem feedback e dicas para autores, então há pesquisas que indicam que é possível aprimorar bastante a escrita a partir dessas interações inerentes à comunidade.

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A categoria "Vamos Polemizar?" traz assuntos do cotidiano com outras visões e questões. O objetivo é entender melhor alguns sensos comuns dados como verdade por tantas pessoas.

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