Vamos Polemizar: Por que odiamos coisas "de menina"?
Quando a participação de Miley Cyrus em Black Mirror foi anunciada meses antes do lançamento da quinta temporada em 2019, a reação dos fãs foi mista e majoritariamente negativa, com críticas sobre como a “artista pop não pertencia ao universo de Black Mirror”. Depois, o episódio foi rechaçado pela audiência por não ser “Black Mirror o suficiente” (o que quer que isso signifique) devido ao enredo previsível e ao final feliz.
Oi? Rachel, Jack and Ashley Too é dificilmente o primeiro episódio “otimista” de Black Mirror. A história não é sequer inovadora no quesito de referência pop: USS Callister, o primeiro episódio da quarta temporada, é recheado de homenagens a Star Trek (e spoiler termina com um final feliz!). O que causou tamanha revolta com a presença de Miley Cyrus em Black Mirror? A questão é: Hannah Montana e Star Trek não estão em pé de igualdade na cultura pop. E o Vamos Polemizar? dessa semana te explica por quê.
Quem determina o que é legítimo?
Miley Cyrus é vista por pessoas de fora do seu público-alvo como a estrela teen que virou a menina problemática (e sexualizada) até concluir sua transição em “mais uma cantora pop” — imagem essa considerada superficial e falsa, como denuncia o próprio episódio de Black Mirror estrelado pela artista. Já Star Trek é lembrado por muitos como uma série de ficção científica que alimenta até hoje produções de spin-off e revivals. Star Trek ganhou um quê de cult com o passar do tempo, ao passo que Miley nunca será capaz de alcançar esse status universal.
O que acontece? Hannah Montana é coisa “de menina”. Star Trek é coisa “de menino”. Os homens, no topo do patriarcado, têm voz para legitimar seus próprios interesses e, assim, beneficiarem-se e estabelecer seus gostos como ideais e um modelo a ser seguido. É por isso que um grupo de fãs adolescentes chorar pela saída de Zayn do One Direction é “pura histeria”, enquanto milhares de homens podem chorar quando seu time favorito perde o mundial de futebol porque “é uma questão de orgulho”.
Tudo que o homem toca é legítimo: comics, ficção científica, rock. Quando mulheres manifestam o mais remoto interesse em um campo ainda não apoderado por homens, essa área logo ganha tons rosados e se torna baboseira: astrologia, pop, drama, romance.
O prejuízo desse preconceito vem em mão-dupla (quem não ouviu um “ah, sempre soube” quando o cantor pop Ricky Martin admitiu ser gay?), mas, para além do sofrimento de meninas que gostam de coisas “de menino” (e são tachadas de interesseiras e falsas que fazem isso só para “atrair homens”), é importante descobrir a origem desse ódio para que nós, garotas que gostamos de coisas “de garotas”, possamos nos perdoar e tornar esse interesse fonte de resistência ao machismo.
Tudo começa na adolescência
As “febres mundiais” são sempre iniciadas pelo público feminino adolescente: Beatles, Crepúsculo, K-pop. Os tão odiados adolescentes são intensos em seus interesses de forma que se apoderam deles ao extremo. Eles vestem (literalmente) a camisa da sua série preferida, seguem recomendações da sua youtuber favorita, e usam gírias dos seus personagens-modelo. Quem nunca se definiu como uma capricorniana de Lufa-Lufa team Edward do distrito 12?
Essas qualificações podem parecer bobas, mas elas são importantes para auxiliar o adolescente na formação de identidade. Hoje você é team Edward; amanhã você descobre que essa foi a forma de sua juventude descobrir que você curte um papo-cabeça. Ou então você sempre achou a Alice Cullen mil vezes superior e mais atraente, e saiu do armário alguns anos depois.
O x da questão é: nós odiamos adolescentes. A sociedade repudia meninas adolescentes (ênfase no gênero) e seus interesses. Elas são exageradas, sentimentais, histéricas. Se pegarmos o oposto a tudo isso (parcimônia, racionalidade, repressão) encontramos qualidades tidas como masculinas, e louvadas pela sociedade.
Mas de onde vem essa rejeição? Adolescentes passam pela crise existencial de “quem eu sou? o que devo fazer? e o futuro?” em meio a explorações e experiências. E é aí que entram as “febres mundiais”: livros, séries, música e outras mídias fornecem repertório para a adolescente conhecer novas possibilidades e descobrir o mundo.
A misoginia ataca as garotas a partir do momento em que elas tomam conhecimento de identidades diversificadas que fogem da regra machista, e descobrem que “meninas vestem rosa, meninos vestem azul” é balela.
One Direction, Crepúsculo e Justin Bieber (este último especificamente no início da carreira, por favor) permitiram às jovens explorar sua sexualidade a partir de paradigmas divergentes à ordem imposta pelos homens. Os garotos dessas mídias não apresentam apenas traços considerados masculinos pelo patriarcado; eles têm também características consideradas femininas, como ternura e beleza.
A mídia também não ajuda na representação das adolescentes. Em geral, elas aparecem como fãs loucas, e seus interesses ganham caracterizações genéricas, como "febre teen" (até porque a redação é composta por adultos que fazem a mínima ideia do que jovens gostam). Tá, o jornal pode dizer que o Now United é um "sucesso adolescente", mas por que ele não acrescenta algo sobre como o grupo promove a diversidade de países fora do eixo ocidental? Quando que teríamos alguém de Senegal, Índia ou Filipinas com destaque no cenário pop?
Ou seja, além de serem uma minoria social, adolescentes sofrem por não ter voz na mídia legitimizada e experimentam o machismo principalmente a partir da misoginia provocada pelos interesses rejeitados pelo patriarcado. Sim, a gente sabe que “aborrescente” é um bicho chato, mas se lembre de quando você estava nessa fase antes de julgar a sua priminha fã de Now United.
Nosso ódio na verdade indica nossas fraquezas
O que a revista Toda Teen e a Taylor Swift de Speak Now têm em comum? Ambos são produtos para adolescentes por adolescentes. Essa abordagem exclui homens da produção, o que desagrada o patriarcado e incentiva a deslegitimação dessas expressões. Afinal, por que apenas Taylor é tachada de ser uma sentimental monotemática por abordar ex-namorados em músicas, quando todas faixas do Maroon 5 em Songs About Jane são sobre uma ex do Adam Levine?
A repulsa a coisas “de garotas” é estimulada principalmente pela presença da feminilidade tida como padrão (mas tão odiada ao mesmo tempo), que põe em xeque os atributos vangloriados pela masculinidade tóxica. Por exemplo, a astrologia é um campo dominado por mulheres porque a elas sempre foi permitido explorar temáticas mais sentimentais e de espiritualidade. Ou seja, não foram as mulheres que dominaram a astrologia; os homens que não foram incentivados a explorá-la por tratar de questões dolorosas para a masculinidade típica.
Vale lembrar que há alguns produtos que, ao demonstrar apelo tanto para adolescentes meninas quanto para meninos, são capazes de ultrapassar a misoginia. Jogos Vorazes, por exemplo, foi um sucesso de bilheteria como filme e um best-seller como livro — algo louvável para uma franquia com protagonista e autora mulheres. A obra é até hoje considerada mais aceitável para as pessoas do que Crepúsculo, por exemplo.
A Saga Crepúsculo causa tanto ódio porque é basicamente o resumo de tudo o que atiça a misoginia: romance, drama, vulnerabilidade — características que costumam ser apontadas por homens que odeiam mulheres como motivos para a suposta fragilidade feminina. Katniss é vista como o oposto de Bella por ter um papel mais ativo na trama, mas focar apenas no fator “girl power” torna a personagem plana e desconsidera seus sentimentos — ao passo que o ódio por Bella incentiva a estereotipação de mulheres com desejos estilo “família tradicional brasileira”. É óbvio que a Bella não é o modelo mais apropriado para o feminismo, mas, em tempos de empoderamento feminino, devemos lembrar que o movimento defende o direito de escolha da mulher.
Uma trégua?
A Taylor Swift de 20 anos que escreveu músicas de amor romântico e a Toda Teen que dá dicas de maquiagem são passíveis de problematização, mas é importante lembrar que esse ponto é trazido à tona apenas quando se deseja crucificar os consumidores desses produtos — e, mais uma vez, as meninas adolescentes são as vítimas.
Um debate sério sobre essas mídias se faz necessário, mas é importante não cair na costumeira armadilha de desprezar interesses adolescentes e tachá-las de superficiais, pois fazer isso é perpetuar outras formas não tão óbvias de opressão sobre meninas.
É válido apoiar os produtos “de mulher para mulher” porque eles são relevantes no sentido de proporcionar insights da visão feminina sem a intervenção do homem. Afinal, em um mundo dominado pela narração masculina, uma mulher ter sua própria voz já é uma luta.
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