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Vamos Polemizar: Pessoas pretas não falam só de racismo!

Desde o brutal assassinato de George Floyd por um policial branco nos Estados Unido no final de maio, debates que envolvem a questão racial ganharam força em todo o mundo, em especial, em países com maior porcentagem de população preta como o Brasil. Passamos a ver, inclusive, mais pessoas pretas tendo espaço nos meios de comunicação e compartilhando suas vivências tão necessárias para combater e derrotar o racismo.


Esse cenário parece ser perfeito, certo? Em uma análise mais rasa até pode ser, mas não é porque geralmente os convites param por aí. Reserva-se à pessoa preta apenas o espaço de debate sobre preconceito, negritude, africanidades e temáticas afins. No entanto, pretos e pretas também produzem conteúdo em qualquer outra esfera do conhecimento e é isso que precisamos ver também na tela da TV, nas ondas do rádio ou em uma coluna bombada de um site na web.


O Vamos Polemizar de hoje discute o que a jornalista Maria Julia Coutinho chamou de “uma segunda escravidão” na edição do programa Em Pauta, da Globo News, que discutiu a luta antirracista com a participação de seis jornalistas pretos da TV. Aliás, algo raro de acontecer e que só foi possível após críticas nas redes sociais. Uma edição anterior do programa discutiu a morte de George Floyd apenas sob a ótica de jornalistas brancos.


Hoje a pauta da luta antirracista é importante, mas que nós negras e negros não fiquemos em uma segunda escravidão, só falando sobre esse tema. (...) Eu não quero ser chamada para entrevistas que falem só da questão do negro. Temos muito mais a oferecer e é importante que se normalize a presença falando de diversos assuntos.

Jornalistas que participaram do programa "Em Pauta" │Ilustração: @petitabell

Pretos não existem só para falar de racismo


Para Gleyce Figueiredo, doutora em Serviço Social pela UFRJ, professora da UFF e diretora de Pesquisa, Extensão e Assistência Estudantil no IFRJ, convidar pessoas pretas apenas para falar de pautas raciais reforça o racismo estrutural. Além disso, limita as potências que existem em outras áreas.


Tem muitas pessoas negras discutindo muitos temas e vai ter cada vez mais. Que a gente possa ocupar outros espaços que não aqueles que nos colocam, o de discutir sempre só a opressão.

O perigo de reservar a missão de falar sobre racismo apenas ao povo preto é produzir um imaginário social de que o racismo é um problema somente de pessoas pretas e que somente elas têm o dever de falar sobre preconceito. O que é uma inverdade já que a luta antirracista deve ser de todos, inclusive, dos brancos a partir de reflexões sobre privilégios.


É como se o racismo fosse culpa só das pessoas negras. Isso reforça o racismo e dá a ideia para as pessoas brancas, de modo geral, que elas não precisam falar sobre esse tema, sobre esse assunto. Ou então, elas dizem o seguinte: ‘eu não tenho lugar de fala, então, eu não posso fazer essa discussão, falar sobre essas questões’.

E o local de fala?


Reivindicar representatividade preta nos diversos ambientes de debate, poder e decisão não é diminuir a importância da vivência de pessoas pretas (e do local de fala delas) na luta antirracista. Inclusive, o jurista, doutor e professor Silvio Almeida disse, em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, que pensadores pretos não falam apenas sobre questões raciais, mas sim “apontam um dado de análise da realidade, sem o qual, todas as demais análises não são eficientes”. E ainda concluiu que “só sabemos tratar questões raciais porque entendemos demais de questões centrais”.


Tanto que para Mychelle Alves, doutora em Engenharia de Processos Químicos e pesquisadora e chefe de laboratório na Fiocruz, o ideal é unir as duas temáticas: o local de fala e mostrar a potência preta em outras atividades. Segundo ela, é importante falar tanto da atuação profissional dela como também colocar um recorte racial palestras e eventos porque qualquer vida de pretos e pretas é traçada também pelo racismo.


Dar o espaço de fala sobre o racismo é uma forma de denunciar o racismo e de nos fortalecer na luta antirracista, mas a gente precisa aproveitar as oportunidades e denunciar também que os negros e negras nesse país tem potencias incríveis, tem formações incríveis, estão nas universidades, estão nos centros de pesquisa, estão na comunicação, no audiovisual, enfim, em várias áreas. Tem capacidade e podem sim, de fato, serem convidados para falar dos trabalhos que exercem.

Vivemos em uma democracia racial?


A TV brasileira é um exemplo de que a democracia racial é um mito em nosso país. Ainda que mais de 50% da população brasileira se autodeclare parda, preta ou indígena segundo o IBGE, a nossa televisão é majoritariamente branca. E isso não ocorre somente nas telinhas e Gleyce, que tem atuação voltada a permanência estudantil nos institutos e universidades públicas, vivencia essa realidade nos espaços que é convidada para expor suas pesquisas. Em apenas quatro situações, ela dividiu fala com outras pessoas negras, sendo que uma delas foi organizada pela própria.


Eu percebo que, em raríssimas mesas, eu partilhei com pessoas igualmente negras ou que havia um certo equilíbrio. Eu consigo me lembrar com clareza de ter estado apenas três vezes em mesas que haviam outras mulheres negras (...) e uma em que dividi com um rapaz negro. Então, foram situações bem emblemáticas, tanto que eu consigo enumerar.

Ainda segundo Gleyce, a preocupação em ter mulheres pretas em eventos e mesas de debates mais progressistas vem crescendo, principalmente após a morte da vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro, em 2018. Isso ocorre pela “preocupação em ter mulheres negras nas mesas”, não pelo conteúdo que ela pode passar. Além disso, os convites são mais recorrentes no mês de novembro, muito atrelado ao mês da Consciência Negra e a questão de discutir a temática racial.


Mychelle também reforça que não há um equilíbrio racial nos eventos técnicos em que participa. Somente em um debate que participou houve um equilíbrio e, justamente, foi um produzido por ela. Quando se fala da participação de mulheres pretas é ainda mais difícil. Para ela, é um problema de gênero e de raça: “se já é difícil para a mulher em si, para a mulher negra é ainda pior. Nós estamos na base da pirâmide. Somos a maioria da sociedade e não nos reconhecemos e não nos vemos nos espaços”, disse.


É coisa de preto...


Ainda que a altivez preta possa incomodar, afinal, o sucesso de pessoas pretas que rompem as barreiras abala as estruturas do racismo estrutural, é coisa de preto ser bem sucedido em qualquer área de conhecimento, seja na economia, política, ciência, comunicação e temas sociais. Inclusive, pela primeira vez, os pretos e pardos são maioria no Ensino Superior como aponta pesquisa divulgada pelo IBGE no final do ano passado.


A pesquisa ainda afirma que a mudança é reflexo de políticas públicas que proporcionaram o acesso da população preta e parda na rede de ensino. Mas, ainda assim, mostra que há muito o que avançar como ter mais representatividade nos cargos de poder e liderança. Quantos professores pretos temos nas universidades públicas e privadas?


Essa pergunta pode ser estendida ao números de CEOs e diretores nas empresas, atores e atrizes em uma novela e até ao número de jornalistas pretos dentro de uma redação. No dia-a-dia podemos auxiliar a superar essa barreira valorizando quem já conseguiu rompê-la. E aqui vai um lembrete: temos vozes pretas para falar sobre absolutamente qualquer assunto!


Consumir conteúdo dessas pessoas é essencial para normalizar a figura preta em todos os espaços que desejamos. Temos referências desde empresárias como Eliane Dias, CEO da Boogie Naipe, e empreendedoras como Adriana Barbosa, criadora da Feira Preta, até filósofas como Djamila Ribeiro e escritoras como Janine Rodrigues.


Durante o mês de junho, compartilhamos esses e outros nomes na #listapreta, projeto desenvolvido em nosso Instagram após a campanha #BlackoutTuesday. Que tal dar uma passadinha lá e conferir nome de mulheres pretas incríveis?



Mais uma vez, representatividade importa!


A jornalista Maju Coutinho, a assistente social Gleyce Figueiredo, o advogado Silvio Lima e a química Mychelle Alves são quatro nomes que se destacam em suas profissões e inspira tantas outras pessoas. Ouvir o que eles possuem a dizer sobre suas competências é enriquecedor assim como sobre racismo também, pois, infelizmente, o tema entra em pauta pelo Brasil ser um país onde a desigualdade social tem cor (e endereço).


E uma história que ilustra bem a importância da representatividade em qualquer área é um recente episódio que Mychelle evidenciou. Ela estava prestes a entrar em uma reunião virtual, na qual tratava de um projeto que coordena em parceria com a Anvisa e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Aguardavam a “doutora Mychelle” e quando ela entrou na reunião, um outro jovem servidor preto abriu um sorriso bem grande, mostrando ser uma bonita surpresa para ele ver uma mulher preta ocupando um importante cargo de coordenação.


Ele me viu ali como mulher negra. Ele não esperava que aquela coordenadora, aquela doutora, aquela pesquisadora fosse uma mulher negra, mas eu vi a felicidade no olhar dele que me marcou muito. Tem um proverbio africano que é o Ubuntu e fala que ‘eu sou porque nós somos’. Somos mulheres e homens negros, é um puxando o outro. E eu só sou porque nós somos, sabe? Representatividade importa tanto para mulheres quanto para homens.

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A categoria "Vamos Polemizar?" traz assuntos do cotidiano com outras visões e questões. O objetivo é entender melhor alguns sensos comuns dados como verdade por tantas pessoas.

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