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O machismo e as representações femininas no cristianismo

Conquistamos o direito ao voto, fomos eleitas a chefes de governos, ganhamos prêmios e já viajamos até o espaço. Nos últimos 100 anos, nós mulheres conquistamos muitas coisas que há tempos atrás nossas ancestrais jamais imaginariam. Em muitos destes e outros momentos o cristianismo esteve presente e por muito tempo permaneceu como a única vertente religiosa correta a se seguir. Mas você já parou pra pensar em como ela foi responsável pela construção da imagem que o corpo feminino tem ao longo dos anos? É pensando nessa questão que no “Taburóloga” de hoje iremos falar sobre como as religiões cristãs ajudaram a sociedade a construir uma imagem secundária e muitas vezes marginalizada das mulheres através das representações femininas presentes na Bíblia. Afinal, quer tabu maior que a religião?


A mulher é o fruto do pecado


Seja lá qual for sua crença, certamente você já ouviu falar de Adão e Eva. A história pode ser facilmente encontrada no livro de Gênesis da Bíblia e segundo ela Adão e Eva foram o primeiro homem e primeira mulher criados por Deus.


Adão e Eva teriam comido do fruto proíbido e banidos do paraíso. | Imagem: Opus Dei

De acordo com a história presente nos primeiros capítulos do livro de Gênesis, Deus cria Adão a partir do barro e o coloca no Jardim do Éden dizendo que todos os frutos do lugar podem ser consumidos, exceto os da Árvore da Ciência do bem e do mal. Após um tempo, Eva é criada a partir das costelas de Adão para lhe fazer companhia. Ambos são inocentes e não possuem malícia. No entanto, uma serpente convence Eva a comer o único fruto proíbido por Deus. Após ver Eva provar, Adão também é influenciado pela serpente e também come o fruto proibido. Toda essa ação, faz com que tanto Eva quanto Adão sejam expulsos do paraíso por desobedecer as ordens de Deus.


Acredita-se então, que o pecado surge a partir desse ato de Adão e Eva, e que todos nós, seus descendentes, herdamos o pecado. Talvez você nunca tenha percebido, mas nessa história o fato de Eva ser a primeira a pecar e após isso, influenciar Adão a fazer o mesmo, diz muita coisa.


A tradição cristã, encara os seres humanos (principalmente os homens), como fracos e “sujeitos a tentações”. E no livro de Gênesis percebemos que os homens, representados por Adão, são fracos em sua resistência aos prazeres da carne, e são convencidos pelas mulheres, representadas por Eva, a provar o fruto proibido.


Eva é o fruto do pecado? | Arte: Kathleen Ney

Até os dias de hoje, muitos cristãos enxergam a mulher como o fruto do pecado, aquela que assim como a serpente, seduz os homens e os faz ter atitudes erradas. Além disso, Eva é representada com um papel secundário, surgindo após a criação do homem e feita para fazer companhia a ele, ganhando evidência apenas quando faz algo errado.


A maternidade x Sexualidade


Quando falamos de maternidade no cristianismo é impossível que o nome “Maria” não venha em nossa mente. Ela era uma mulher digna, leal, amorosa e virgem. Esses foram os motivos que fizeram dela a escolhida para ser mãe de Jesus Cristo através do milagre feito pelo Espírito Santo. Maria então foi mãe de Jesus mesmo sendo virgem.


Se abrirmos o livro de I Coríntios no capítulo 7 e nos dois primeiros versículos, lemos a seguinte frase: “Bom seria que o homem não tocasse em mulher, mas, por causa da fornicação, tenha cada homem sua própria mulher e cada mulher seu próprio marido.”. O trecho “Bom seria que o homem não tocasse em mulher.” reforça a ideia de que o ato em que a maternidade é concebida não é o mais correto a se fazer, mas ainda assim “por causa da fornicação, tenha cada homem sua própria mulher e cada mulher seu próprio marido.”. Só que essa frase não se aplica a Maria.


Maria era virgem e foi a escolhida para gerar Jesus Cristo. | Arte: Rodalume

O fato de Maria, a representação mais forte de maternidade no cristianismo, ter sido mãe sem fazer sexo, traz uma mensagem quase imperceptível de que a maternidade é sagrada e pura, mas o processo em que ela é alcançada, nem tanto.


Você pode até achar que isso é algo irrelevante mas não é. Desde pequena me considero cristã, pois acredito que Cristo tenha de fato existido. Nasci em família católica e sempre estive nas missas. Quando a sexualidade chegou na minha vida, a primeira coisa que me veio à mente foi “será que estou pecando por pensar em sexo?”. E isso é uma das coisas que mais acontecem com as mulheres que já seguiram ou seguem uma religião de vertente cristã. E não é nem um pouco bacana imaginar que você pode estar ferindo a algo que acredita apenas por ter desejos sexuais. O sexo é visto como algo sujo, e até falar ou pensar sobre ele é considerado algo errado.


As mulheres e os papéis secundários para o cristianismo


Assim como vimos com Eva, outras mulheres tiveram papéis secundários para o cristianismo mesmo que tenham grande importância para a história religiosa. Maria por exemplo, muitas vezes é vista apenas como mãe de Jesus. Todas as informações que se tem sobre ela são de que era uma mulher feita para a maternidade ao possuir as mais belas qualidades que uma mãe precisa ter.


Mas quem era Maria antes de ser mãe, além de ser uma dona de casa dedicada? Quais eram seus sonhos e objetivos? Quem foi Maria depois ser Mãe? Essas foram questões que sempre carreguei comigo enquanto frequentava a igreja católica. Maria pra mim era uma mulher forte e inspiradora, mas pouco sabia sobre ela. Já para outras religiões da vertente cristã, é como se Maria tivesse existido apenas para dar à luz a Jesus já que ela nem sequer é mencionada em seus cultos religiosos.


Outra mulher que aparece pouco é Maria Madalena. A Bíblia não fornece muita coisa sobre quem de fato teria sido Maria Madalena e é por isso, que inúmeras suposições são feitas até hoje. A informação mais importante que temos é que Maria Madalena havia sido curada por Jesus, onde no capítulo Lucas diz que dela “saíram sete demônios” (Lucas 8:2) e que após isso, ela passou a segui-lo como discípula.


A Madalena. | Imagem: George Romney (c. 1790)

Existem interpretações feitas pela igreja que dizem que Madalena havia sido prostituta, mas a verdade é que não há nenhuma menção disso na Bíblia. A partir dessa interpretação, que acredite se quiser é bem popular, Maria Madalena passou a ter uma imagem marginalizada para muitos fiéis, afinal o sexo não é algo considerado bacana não é mesmo?


Ao ler a Bíblia o que percebemos é que Maria Madalena era uma mulher sábia e bastante fiel a Jesus. Mas podemos perceber também que ela foi um dos principais alvos do machismo no cristianismo. Machismo esse que perdura até os dias de hoje. Começando pelas escolhas dos livros do Novo Testamento. Existem indícios de que o livro de Maria Madalena haveria sido retirado, e cá entre nós? Isso explicaria o fato de sabermos tão pouco sobre ela. A última citação que temos dela é de quando ela se torna a primeira pessoa a encontrar o sepulcro de Cristo aberto e, portanto, a anunciadora sobre a ressurreição de Jesus. Após isso, seu nome desaparece do livro, é como se Madalena não tivesse existido.


Se folhearmos algumas páginas do Evangelho, encontraremos falas bem problemáticas nos dias de hoje que representam o incômodo que a visibilidade e poder de feminino representava aos homens daquele tempo. No Livro de Tomé, Madalena é citada em um diálogo de Pedro e Jesus: "Simão Pedro disse a eles: 'Maria tem de nos deixar, pois as mulheres não são dignas de viver'", diz o trecho. Na sequência, Jesus responde: "Eis que eu a guiarei para torná-la masculina, para que também ela se torne um espírito vivente, como vós, que sois homens. Pois toda mulher que se fizer homem entrará no Reino dos Céus". É até difícil interpretar essa conversa aos olhos modernos, mas podemos perceber que essa fala é direcionada apenas a Madalena e não há outras mulheres, por qual motivo isso teria acontecido?


Nos textos gnósticos conseguimos entender um pouco do incômodo que os discípulos tinham com a presença de Maria Madalena. Neles, ela teria sido uma discípula de suma importância, na qual Jesus teria confidenciado informações que não teria passado aos outros discípulos. Ela seria então como uma confidente de Cristo e portanto, alguém mais próximo de Jesus do que os demais. Agora se pararmos para pensar conseguimos entender um pouco melhor. Imagina o quanto Madalena havia incomodado os outros homens por ser uma mulher e ocupar um papel tão importante e de mais prestígio que o deles.


Nos textos apócrifos, mas precisamente no Evangelho de Filipe, existem trechos que podem trazer a interpretação de que Maria Madalena teria um relacionamento amoroso com Jesus. No primeiro diz que uma das Marias que “sempre caminhavam com o Senhor” era “sua companheira”. Outra passagem, apesar de ser repleto de lacunas diz que Jesus “a beijava com frequência na sua boca”. Mas é importante ressaltar que tudo pode ter sido uma questão de tradução, já que algumas palavras possuem mais de um sentido para a linguagem original. Tanto os textos gnósticos, quanto os apócrifos, não são aceitos pela Igreja Católica e por essa doutrina ser a mais popular, é como se eles não existissem. É por isso que Maria Madalena ganha um papel quase invisível para o cristianismo, pois pouco se tem informações sobre ela na doutrina cristã.


Evangelhos apócrifos não são aceitos pelas Igrejas tradicionais. | Foto: Gnosis Brasil

Evas, Marias e Madalenas

Tanto Eva, quanto Maria e Madalena mesmo com papéis secundários, marginalizados ou invisíveis, são responsáveis por acontecimentos importantes para a doutrina do cristianismo. É claro que sabemos que a principal fonte da doutrina, a Bíblia, foi escrita há tempos atrás e que naquele tempo o machismo era escancarado e muito maior do que atualmente. Mas ainda assim, se olharmos para essas três personagens conseguimos enxergar papéis que perduram até os dias de hoje para muitas mulheres.


O cristianismo é ainda hoje a religião predominante no mundo, e ter tanto machismo enraizado e não debatido torna tudo ainda mais problemático. Mesmo que o número de líderes religiosas esteja aumentando, ainda é raro ver mulheres como formadoras de opinião frente aos fiéis. A falta do corpo feminino nesses espaços dificulta a quebra dessas crenças machistas que durante anos dão à mulher papéis secundários.


Se você parar pra pensar aposto que conhece algumas Evas que são ofuscadas pelo homem e que são extremamente marginalizadas por um único erro que cometeram. Tenho certeza que conhece algumas Marias, que tiveram suas vidas resumida à maternidade e que se não fosse isso seriam consideradas invisíveis. Certamente conhece algumas Madalenas que mesmo sendo mulheres fortes, sábias e cheia de qualidades, foram difamadas, diminuídas e muitas vezes vistas como insignificantes.


Aos poucos quem sabe, veremos Eva, Maria e Madalena vistas com outras interpretações perante o cristianismo. Quem sabe também, aos poucos o corpo feminino ocupe mais espaços além dos que citamos no começo deste texto. Que se torne comum ver líderes mulheres rompendo todo o tabu e machismo presente na religião. E que ver uma cristã escrever palavras como estas presentes aqui, não soem como algo herege diante dos olhos da sociedade. Quem sabe aos poucos, a mulher possa, dentro do cristianismo, ocupar o lugar que ela desejar e merece. Afinal, “Lugar de mulher é na cultura e onde mais ela quiser.”


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Já pensou como a vida seria muito mais simples se a gente falasse mais sobre alguns tabus? Esse é um dos objetivos da categoria ‘Taburóloga’ que conta com textos quinzenais



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