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Rina Sawayama destrincha críticas necessárias em seu primeiro álbum

Sawayama (2020), primeiro álbum da cantora nipo-britânica Rina Sawayama, completou um mês de lançamento no último domingo (17). Cheio de faixas intimistas para bater cabeça, dançar na balada ou chorar no chuveiro, é meu dever compartilhar essa (fantástica) recém-descoberta com vocês.


“Sawayama” é diferente do pop comum que temos ouvido por aí, e traz o sopro de ar fresco que o gênero precisava. A faixa Bad Friend do CD ganhará um clipe inédito nesta quarta-feira (20), então que tal aproveitar a estreia do vídeo para conhecer mais sobre o álbum? Segura na minha mão e vem me acompanhar enquanto eu apresento mil e uma razões para você ouvir essa obra de arte.


Capa do álbum "Sawayama". Foto: Divulgação

“Sawayama”: o álbum


É impossível não notar, logo na primeira vez em que ouve o CD, que “Sawayama” se trata de uma representação extremamente íntima e cheia de sentidos e detalhes especiais para a própria Rina. O disco abre com Dynasty, que fala abertamente sobre a dor herdada por famílias, o que já deixa bem claro que o "Sawayama" do título do disco significa muito mais do que o sobrenome de Rina (e, portanto, sua dinastia).


Não tem como discutir “Sawayama” como disco sem discutir Rina como pessoa. A cantora, compositora e modelo nasceu no Japão, mas se mudou para Londres aos cinco anos de idade. Ainda criança, seus pais se separaram em um divórcio que ela própria descreve como “desastroso”, o que resultou em um desgaste na sua relação com a mãe. Para a elaboração de “Sawayama”, Rina revisitou memórias desconfortáveis da infância e teve uma conversa honesta com a mãe — entrevista essa que faz sua aparição na última faixa do álbum, Snakeskin.



O álbum é um reflexo das experiências acumuladas por Rina em seus 29 anos de existência. A própria artista declarou que “[Sawayama] é o culminar de todas as minhas experiências de infância, memórias e os traumas da minha família. Foi a coisa mais curativa de todos os tempos”. Não surpreende, então, que os três singles do álbum abordam temas tão controversos. STFU! fala sobre as micro-agressões machistas sofridas por asiáticas no Ocidente, enquanto Comme des Garçons (Like The Boys) reivindica o direito das mulheres serem orgulhosas (como os homens são) sem correr o risco de serem taxadas de vadias. Já XS, com um refrão que constantemente evoca a palavra “excesso”, critica o consumismo do sistema capitalista, que degrada a condição humana como clientes ou trabalhadores.


A variedade de temáticas é refletida com uma diversidade de gêneros musicais, que se misturam graças à globalização em que Rina foi criada, como uma imigrante japonesa no Reino Unido. Ela usa e abusa de seus conhecimentos culturais, e é estranhamente satisfatório ouvir o sotaque britânico seguido pelos eventuais versos em japonês. Ouvir “Sawayama” é uma viagem: ora toca uma música com vibe “Britney Spears na virada do século”, ora toca um instrumental clássico que parece sair da trilha sonora de algum videogame estilo Final Fantasy.


A viagem pelo mundo de Rina



Dynasty pode parecer um começo pessimista para o álbum. A música inicia com um instrumental grandioso de ar “épico” enquanto Rina canta seus sofrimentos sobre herdar a dor de seus pais e seguir com uma dinastia perturbada de inseguranças e traumas. Contudo, o desenrolar da melodia cresce e ganha uma guitarra poderosa ao fazer o seguinte convite ao ouvinte: “Won’t you break the chain with me?” (Você quer quebrar a cadeia comigo?).


Isso traz um certo otimismo à música, e Rina pondera a existência de esperança de forma até racional: “Mother and father, I know you were raised differently/Fighting about money and this infidelity/Now it's my time to make things right/And if I fail, then I am a dynasty” (Mãe e pai, eu sei que vocês foram criados de forma diferente/Brigando por dinheiro e por causa dessa infidelidade/Mas agora é a minha vez de fazer o que é certo/E, se eu falhar, então serei uma dinastia).



XS já começa irônico pelo nome da música, que é um trocadilho entre a etiqueta de tamanho de roupa “extra small” (o nosso PP aqui no Brasil) e a palavra “excess” (excesso, em inglês). Alguns versos podem até lembrar um quê de 7 rings da Ariana Grande: “I want it all, don't have to choose/And when the heart wants what it wants, what can I do?/So I'll take that one, that one, yeah, that one too/Luxury and opulence, Cartiers and Tesla X's/Calabasas, I deserve it/Call me crazy, call me selfish/I'm the baddest and I'm worth it” (Eu quero tudo, não preciso escolher/Se o coração quer o que ele deseja, não posso fazer nada/Então eu vou pegar aquele, aquele outro e aquele também/Luxo e opulência, joias Cartier e carros Tesla X/Eu mereço morar em Calabasas/Me chame de doida e egoísta/Eu sou a pior e valho a pena).


Só que, enquanto 7 rings engrandece o consumismo, XS critica o consumo em excesso incentivado pelo capitalismo com uma letra extremamente debochada e sarcástica. O clipe é tão crítico e inteligente quanto a letra, e traz Rina como uma daquelas comerciantes de canais de venda 24 horas, até que… Bom, não vou estragar a surpresa da história, mas saiba que XS se preocupa em mostrar como o mercado nos força na posição de clientes e de provedores de riqueza, tudo graças à exploração do nosso trabalho.


Quem ouve XS de primeira pode ficar um pouco confuso, já que a música começa como um pop anos 2000 e termina com um som de guitarra bem pesado logo após o refrão. Segundo Rina, ela “[...] queria espelhar a justaposição lírica sobre consumismo e mudança climática com a produção metal versus R&B, para criar uma música que seja chocante e familiar ao mesmo tempo”. E a cantora conseguiu isso, já que basta ouvir algumas vezes para começar a curtir a guitarra e o aspecto mais pop da música.



STFU! é a música em que Rina libera sua raiva da forma mais agressiva possível. Enquanto outras faixas do álbum se valem da ironia (como XS e Comme des Garçons) para ganhar um tom mais ácido, a cantora dessa vez recorreu ao nu metal das bandas favoritas de sua adolescência, como Limp Bizkit, Deftones e System of a Down, para mandar os racistas de plantão calarem a porra da boca (na tradução em português mais honesta possível).


Rina chegou a confessar que estava prestes a concluir a produção do álbum com uma grande gravadora quando a empresa mudou de ideia diante de tal música “violenta” — afinal, mulheres asiáticas não deveriam ser indefesas e inofensivas?... A cólera de Rina é acompanhada por risadas maníacas em um solo de guitarra, e o clipe mostra um homem branco aleatório lhe fazendo comentários racistas durante um encontro — coisa que muito provavelmente já aconteceu em sua estadia na Inglaterra.



Comme des Garçons (Like The Boys) traz um giro de 360º após o heavy metal de STFU!. A música disco deve agradar a maioria dos fãs de pop, daí a estratégia inteligente de lançá-la como single com um clipe colorido e psicodélico. Comde (preguiça de escrever o nome inteiro toda hora) tem um refrão viciante que gruda facilmente na cabeça de qualquer um e, apesar do título longo em francês, a música é na verdade uma referência à marca japonesa de roupas Comme des Garçons.


O bom e esperado trocadilho de Rina traz a ideia de poder se sentir orgulhosa de si mesma na sociedade patriarcal que critica mulheres confiantes (“garota, está tudo bem, você nunca deveria ter vergonha de ter tudo”), julgando a masculinidade tóxica que afeta todas nós.



Akasaka Sad mete o dedo na ferida que todos imigrantes devem ter: sentir que não pertence a lugar nenhum por ser uma mistura confusa de experiências culturais. Rina expressa suas perturbações “nacionais” com uma pegada de trap que traz um refrão muito agradável de ouvir. A repetição de sons semelhantes (com termos como akasaka, sad, suffer, sucker, mother e father) resulta em uma batida diferenciada e é seguida por uma estrofe completamente em japonês e bem rítmica.


A letra é muito honesta, em especial a parte em que Rina constata que, seja no Japão ou na Inglaterra, ela ainda se sente desconfortável com si mesma: “Flew here to escape/But I feel the same” (Voei para cá para fugir/Mas me sinto igual). A própria cantora reconhece que esse sentimento não é unicamente seu, e questiona se seus pais sofreram dessa forma quando se mudaram para o Reino Unido.



Paradisin’ traz a vibe Britney Spears de volta, e é um dos momentos no álbum em que Rina soa mais “jovial”. Enquanto as faixas anteriores ponderam assuntos mais pesados, ela não abre mão das críticas nesta música, mas as mostra de forma mais lúdica, por assim dizer. Paradisin’ fala sobre aproveitar a juventude, se divertir e enlouquecer — tudo isso enquanto sua mãe não larga do seu pé: “First kiss in 2003/Making out, feeling carefree/But then his phone rings and/Your number's on the screen” (Dei meu primeiro beijo em 2003/Dando uns amassos, me sentindo despreocupada/Mas então o celular dele toca/E seu número aparece na tela).


A batida de Paradisin’ tem um senso de urgência que faz com que a canção seja até engraçada, por representar uma situação tão comum para adolescentes. E, de fato, a batida incorpora a ideia de jovens inconsequentes vivendo como se não houvesse amanhã.



Love Me 4 Me alivia o clima de “Sawayama” com uma mensagem de amor próprio. A música começa com uma citação de RuPaul (“Se você não pode amar a si mesmo, como pode amar outra pessoa?”) e uma batida animada estilo new jack swing, que alia hip hop a R&B. A música conclui que, não, não adianta pensar que alguém pode compensar seu amor quando você não se auto-agrada (“Você não pode me consertar, você não vai vencer”).



Bad Friend começa alegre, descrevendo atividades comuns de amigos, como fazer piadas e aprontar confusões…. Aí vem o primeiro refrão e deixa uma forte impressão, cortando toda a batida da música para mostrar apenas a voz de Rina confessando que, às vezes, ela é uma péssima amiga. Ela reconhece, em Bad Friend, que suas próprias inseguranças podem sabotar suas amizades, e se pergunta por que isso acontece consigo e com todas nós.



Fuck This World se propõe como um interlúdio, mas tem brilho próprio com os vocais mais agudos de Rina. A música poderia ser uma intervenção revoltada, mas não traz a agitação de STFU!, sendo um tumulto mais contido e quase choroso. Fuck This World é principalmente pessimista: “Sometimes I can only see the bad side of our life/At times I let it consume my own mind, oh oh/Fuck this world, I'm leaving you” (À vezes eu só consigo ver o lado ruim da vida/Às vezes, eu deixo isso consumir a minha mente/Foda-se esse mundo, eu estou te deixando).


Quem não fala inglês pode até se surpreender ao conferir a tradução e ver tal letra perturbada acompanhada com uma batida tão agradável. Mas esse “mundo” mencionado no título da música é bem específico, segundo a Rina compartilhou em uma entrevista: “Escrevi essa música quando me sentia mal com os problemas climáticos. Odeio ver todos os eventos globais que levam espécies à extinção e, apesar disso, os humanos ainda não fazem nada a respeito. Queria dar um fim nesse mundo que presume que o planeta Terra estará aqui para sempre”.



Who’s Gonna Save U Now? traz aquele pop rock que Lady Gaga encarnou em Perfect Illusion tantos anos atrás. E o ar de palco de show, criado principalmente pela presença ao fundo de uma plateia gritando “Rina! Rina!”, foi completamente intencionado pela artista: “Eu sentia que o palco era uma metáfora interessante não apenas para a redenção, mas para aquele arco de contar histórias. [...] Para mim, essa música é o momento de redenção com um estádio de rock”.



Em Tokyo Love Hotel, Rina se rende aos clichês, e ela mesma os reconhece: “I guess this is just another song about Tokyo” (Parece que essa é apenas mais uma música sobre Tóquio), ela lamenta toda vez em que canta o refrão. À primeira vista, pode-se presumir que é uma música de amor sobre gostar de alguém com quem tem um relacionamento casual, e desejar maior apego e compromisso.


Entretanto, a viagem de Rina com essa música foi bem inesperada (e além de minha compreensão), e ninguém melhor do que ela mesma para explicar o real significado de Tokyo Love Hotel:


Eu estava de passagem no Japão quando vi turistas gritando na rua. Eles eram tão barulhentos e desagradáveis, e o Japão simplesmente não é esse tipo de país. Eu pensei nas Olimpíadas [de 2021]. Tipo, 'Meu Deus, as pessoas que virão pensam que aqui é como a Disneylândia, e vão jogar lixo por todo canto!’ O povo japonês é muito educado e respeitoso, e eu sinto essa cultura em mim. Existe um lugar no Japão chamado love hotel, aonde os casais vão apenas para fazer sexo. [...] Eu senti que esses turistas trataram Japão e Tóquio dessa forma. Eles simplesmente vêm para fazer sexo casual, e depois vão embora e dizem: 'Isso foi tão incrível, eu amo Tóquio', mas eles não se importam com as pessoas e não sabem nada sobre elas e nem como é difícil crescer lá.


Chosen Family é o momento country cheio de amor do álbum. Eu fiquei pessoalmente agradecida por ser a penúltima faixa de “Sawayama”; apesar de Rina ter, de fato, aliviado o tom de gravidade das temáticas sérias com a passagem de cada música, concluir o CD com um tom mais otimista era necessário para que a experiência de ouvi-lo fosse plenamente agradável.


Pansexual assumida, Rina dedica a música aos membros da comunidade LGBTQI+ que a acolheram quando estudava Ciências Políticas e Psicologia em Cambridge. Daí vem a ideia de “família escolhida”: diferente da dinastia a que é submetida no começo do álbum, Rina encontra uma segunda família, sem se sentir acorrentada à genética ou a construções sociais.



Em Snakeskin, Rina faz uso de metáforas para expressar que transformou seu sofrimento em algo comerciável: ela trocou de pele como uma cobra e fez uma bolsa cara, assim como traduziu seus sentimentos em letras de músicas e gravou um álbum — estamos falando do “Sawayama”, claro.


É esta a conclusão da sua jornada: pegue minha dor comerciável e faça o que quiser com ela. A relação de Rina com sua mãe, que aparece tão desgastada em Paradisin’, ganha uma ótica mais saudável e otimista em Snakeskin: a faixa conta com uma sample da Sonata para piano No. 8 em Dó menor, op. 13 (mais conhecida como “Sonata Patética”), de Beethoven — melodia esta que a mãe de Rina tocava para a filha no piano durante a infância.


A sample é mais que uma homenagem, já que é possível ouvir sua mãe falar em japonês, ao final de Snakeskin, “Percebi que agora quero ver quem quero ver, fazer o que quero fazer e ser quem eu quero ser”. Foi esta a resposta dada quando Rina a perguntou, em seu aniversário, como ela se sentia por completar 60 anos de vida.


Mulher, asiática, imigrante e pansexual: mais Rinas precisam ter voz própria. Foto: Divulgação

“Sawayama” merece replay eterno


Quem não é familiarizada com a discografia e com o estilo de Rina pode estranhar o álbum de início, mas todas as suas faixas (apesar de tão distintas) soam coerentes quando consideramos o conjunto da obra. É aquela coisa: “Sawayama” tem música para chorar, para se emocionar, para ficar puta com o mundo. Incorporar tantas experiências diferentes faz com que nos identifiquemos com pelo menos uma das faixas, seja quem você for.


Eu preciso militar por um instante: a grandiosidade do "Sawayama" apenas prova o quão importante é que minorias conquistem seu direito de fala e possam se expressar com liberdade. Nunca que uma inglesa branca faria tal mistura honesta de cultura e ritmos, da mesma forma que um cantor japonês nunca escreveria sobre masculinidade tóxica, e um/a hétero nunca cantaria sobre a necessidade de ter uma "família escolhida".


Eu amei “Sawayama” do início ao fim. Algumas canções não me agradaram 100% na primeira ouvida, já que eu tenho um apatia anormal para músicas lentas. Mas havia tanto para descobrir nas composições, nas letras, nas sonoridades, que é impossível escutar “Sawayama” apenas uma vez. Se você tem um pezinho no pop, muito provavelmente o mesmo acontecerá contigo.



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