Resenha: "Os abismos" traz os dilemas da relação entre mãe e filha sob os olhos de uma criança
Todo mundo, em algum momento da vida — ou em vários deles — já sentiu como se estivesse prestes a cair de um precipício. Mas o que fazer nessas horas? Essa é a pergunta que, por menos explícita que apareça, permeia as páginas de “Os abismos”, novo livro de Pilar Quintana (Intrínseca, 2022), vencedor do Prêmio Alfaguara de 2021 na categoria Romance. A autora colombiana, conhecida por tratar de temas que envolvem a maternidade, dessa vez também olha para os assuntos mais íntimos e complexos do feminino, porém, sob outra perspectiva: a da criança.
Claudia, personagem principal, é uma menina de uns 8 anos de idade e é quem nos conta a sua história. Primeiro, conhecemos Claudia, seus pais, onde moram, a dinâmica do dia a dia. A menina vive com a mãe, de quem herdou o nome, e o pai, Jorge, cerca de 20 anos mais velho que sua mulher. O apartamento, em Cáli, na Colômbia, é tomado por plantas no primeiro andar enquanto a família mora no segundo.
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Logo no início percebemos o tratamento diferente da mãe e do pai com a menina. A mulher, fria e apática, não esconde o desejo de não ter sido mãe. Foi algo que aconteceu, assim como o casamento quase que arranjado, interrompendo seus sonhos e expectativas. É o que a sociedade classificaria como a “mãe desnaturada”, que prefere cuidar das plantas e ler revistas de fofoca recheadas de histórias trágicas de celebridades.
Não é uma trama com grandes reviravoltas. Tampouco uma narrativa complexa. Pelo contrário. É o retrato do cotidiano de uma família sob o olhar de uma menina que está aprendendo a lidar com a perda, a rejeição, a finitude da vida; uma criança que está em constante contato com a morte e que teme que a mãe termine como as famosas das revistas que folheia. Acompanhamos a luta diária dessa menina para conquistar a atenção da mãe ao mesmo tempo que batalha entre o amor e o ódio que sente por ela. Acompanhamos as oscilações de humor de sua progenitora, muito atrelada não somente a uma segunda figura masculina que aparece em sua vida, mas também às decisões do passado que a levaram até aquele lugar. E se de um lado há toda essa cobrança de sentimentos, do outro, do lado paterno, resta apenas a serenidade, o silêncio. Uma metáfora bastante plausível dos papéis de gênero, por assim dizer.
Ao mesmo tempo que deseja se aproximar e ajudar a mãe, Claudia quer gritar com ela, culpá-la por não lhe dar o amor que deveria. E nesse vai-e-vem a menina se vê, o tempo todo, diante de abismos — físicos e metafóricos. A escada do apartamento para a floresta selvagem do piso de baixo, a vista para o penhasco da quinta em que vai passar férias, o enorme abismo que há entre ela e sua mãe. Tudo lhe causando medo e mal-estar que, mesmo ela, uma criança, não sabendo nomear, faz com que a gente consiga compreender — como se fosse um acordo tácito da autora com quem lê. E isso vai ficando mais claro à medida que mergulhamos no cotidiano desses três personagens.
Pilar tem uma escrita espetacular e cada vez mais vem se consolidando como um nome importante para a literatura latina. Ela é capaz de transpor a aflição da menina, a ansiedade, a agonia ao ponto de você não conseguir parar de ler. Os cenários descritos por ela também fomentam o incômodo: desde a selvageria das plantas do aconchego do lar ao cânion próximo à quinta onde a família se hospeda nas férias. Os capítulos curtos e o texto direto permitem uma leitura rápida, embora os assuntos tratados careçam de maior atenção.
Pessoalmente, curti mais “Os abismos” do que o romance anterior “A cachorra” (Intrínseca, 2020). Gosto de ver a diferença da abordagem da maternidade em relação aos dois livros (se neste temos uma protagonista que não quer ser mãe, no outro temos justamente o contrário; uma mulher que sonha com isso). Gosto como a autora põe o dedo na ferida e fala de coisas consideradas tabu, como o paradoxo do amor e ódio na relação de mãe e filha — também abordado muito bem em “A filha perdida”, recentemente adaptado pela Netflix. E aproveitando o breve paralelo com Ferrante, em “Os abismos” a figura da boneca também está ali para suprir uma ausência (e paro por aqui para evitar spoilers de ambas histórias).
Uma obra belíssima, cheia de camadas, sobre os abismos que impomos e nos são impostos ao longo da vida. Nota 5/5
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