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Resenha: "Kim Jiyoung, nascida em 1982" e o duro relato de ser mulher em um mundo misógino


(Divulgação/Amazon)

Uma jovem mulher que, ao tornar-se mãe, deixa o emprego para cuidar da filha. Apesar do casamento estável e da presença paterna, ela sente a necessidade de abandonar a carreira para assumir, integralmente, o trabalho doméstico. Essa é – também – a realidade da protagonista de “Kim Jiyoung, nascida em 1982” (Intrínseca, 2022), obra assinada por Cho Nam-Joo, ex-roteirista de televisão. Para os já imersos na cultura sul-coreana, o título recém-chegado ao Brasil pode não ser tamanha novidade: ele foi elogiado por RM, o líder do BTS, um dos maiores grupos de K-Pop do momento, e no TikTok é figurinha marcada nas book trends.


Lançado originalmente em 2016 e traduzido para mais de 18 idiomas, o livro gerou polêmica na Coreia do Sul à época da publicação, mas também tornou-se a obra coreana mais vendida nos últimos cinco anos, além de bater 1 milhão de exemplares vendidos no mundo. Aqui, o título chega mediante o sucesso dos doramas no catálogo da Netflix, do fenômeno incontestável do K-pop e da efervescência dos debates feministas, cada vez mais presentes nos espaços sociais.


Mas o que faz de “Kim Jiyoung, nascida em 1982” um marco na literatura coreana contemporânea e uma obra tão necessária?


Comecemos pelo tema central: machismo. Na história ambientada em Seul, Kim Jiyoung é uma mulher de 33 anos, casada, com ensino superior e que resolve abdicar da carreira em uma agência de marketing para cuidar da filha. Um ano depois, ela passa a apresentar um comportamento estranho. Repentinamente, Jiyoung personifica vozes de outras mulheres, vivas ou mortas, mas que já cruzaram com ela de alguma maneira. Preocupado e frustrado com este quadro, o marido a leva para uma consulta com um psiquiatra. E é a partir deste momento que a história se desenrola. Não a história da doença, da “loucura” – tão fácil, neste caso, de associar à mulher –, mas a história de Kim Jiyoung enquanto mulher numa sociedade extremamente machista.



Cada capítulo narra em tom altamente descritivo uma fase da vida de Kim Jiyoung; do seu nascimento, em 1982, à maternidade. Quando Jiyoung chega ao mundo, ela já parte de um lugar de desvantagem, pois, à época de seu nascimento, era comum que abortassem bebês do sexo feminino em razão da política de controle de natalidade, fazendo com que as famílias fossem devotas da gestação do “filho homem”. Ela era a segunda tentativa da mãe de ter um filho (e que, inclusive, chegou a abortar sua outra irmã antes de dar à luz um menino na gestação seguinte). A infância de Jiyoung, marcada pelo preterimento em relação ao irmão mais novo, expõe as marcas do machismo nas relações sociais que atravessam gerações. Na adolescência, o assédio é experienciado ao passo que na vida adulta o que já era difícil torna-se intragável – apesar do que poderíamos chamar de avanços na sociedade. Por exemplo, quando Jiyoung estava perto dos vinte, há a aprovação de uma legislação contra a discriminação de gênero. Mas isso não impede que, anos mais tarde, uma câmera fosse secretamente instalada no banheiro feminino da empresa onde trabalhava para que homens pudessem observar as funcionárias.


O fato é que “Kim Jiyoung, nascida em 1982”, não narra somente as experiências de uma mulher sul-coreana em uma sociedade machista. Vai além. Narra episódios vividos pela mulher em um mundo historica e socialmente machista. Quando a protagonista sofre com o medo avassalador de morrer ao ser perseguida por um cara no ônibus no caminho para casa – e é chamada atenção pelo pai que a culpa pelo que aconteceu – vemos que não é um medo isolado. Cho Nam-Joo discorre sobre medos universais. E acredito que é daí que vem o sucesso do livro mundo afora. Kim Jiyoung, do outro lado do oceano, causa identificação lá e aqui. Não é mera coincidência que a autora tenha usado a própria experiência para escrever esta história através de uma personagem que carrega consigo um dos nomes mais comuns às mulheres do país.


É uma leitura importante, mas que não desce fácil. A trama acompanha notas de rodapé com dados que sustentam a discriminação de gênero no país, ótimo para traçarmos paralelos com a realidade que enfretamos no Brasil. Diria até que dos números nasce a narrativa de Kim Jiyoung. Quando a personagem termina o ensino superior, uma pesquisa realizada no país mostra que os gerentes de recrutamento preferiam contratar homens a mulheres. Quando ela está no mercado de trabalho, outra pesquisa aponta que a Coreia do Sul era o pior país para as mulheres trabalhadoras*. A isso conferimos os índices de disparidade salarial, recrutamento, dentre inúmeras outras questões. Vejam, é estrutural. Nisso me ocorre um trecho do livro, um dos meus favoritos, que diz: “O mundo tinha mudado bastante, mas não as pequenas regras, contratos e costumes, o que significava que na verdade o mundo não tinha mudado nada”.

Pôster da adaptação cinematográfica homônima com Jung Yu-mi (Kim Jiyoung) e Gong Yoo (Jung Dae-hyun). (Divulgação)

Me antecipo a dizer que foi uma das minhas melhores leituras do ano, com um final que desperta severas reflexões. Uma resenha do The New York Times* chegou a comparar a obra ao clássico “A metamorfose” e, é sim, possível ver muito de Kafka nela; a narração fria, meio indigesta, quase que um prontuário de um quadro clínico. Por outro lado, senti falta de uma atenção maior ao comportamento presente de Kim Jiyoung – embora também esteja repensando sobre este ponto até agora.



A quem interessar, em 2019, a obra foi adaptada para os cinemas e chegou a sofrer inúmeras retaliações de grupos antifeministas e conservadores com petições online para que sua exibição fosse proibida. No Brasil, o longa ainda não está disponível, mas o trailer legendado em inglês pode ser assistido abaixo.



No mais, não saberia encerrar este texto com uma frase final de efeito porque tudo o que ocorre no livro persiste, independente de eu tê-lo fechado. Mas deixo aqui a minha esperança para que a minha e as próximas gerações consigam virar estas páginas. Afinal, como questiona o livro, as leis e as instituições influenciam os valores ou os valores influenciam as leis e as instituições?


Nota 4,5/5


*Todos os dados foram retirados do livro Kim Jiyoung, nascida em 1982, Cho Nam-Joo, Intrínseca, 2022.

____ Quer saber nossas impressões sobre diversas obras das mulheres na cultura? Cinema, música, literatura, teatro e muito mais. Tudo isso, duas vezes por semana, na categoria “Crítica”.



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