Queerbaiting: o que é essa polêmica representação LGBT usada em séries?
Por Filipe Pavão, Luísa Silveira e Victoria Rohan
Cada vez mais cobramos maior representatividade dos grupos minoritários nos meios de comunicação e produções audiovisuais que assistimos na TV, nas plataformas de streaming, dentre outros. Não seria diferente com o público LGBTQIA+ já que é evidente o crescimento do consumo consciente no que diz respeito ao que queremos para o futuro. Mas será se essa representatividade vem sempre de maneira adequada?
Em diversos casos, os personagens são retratados nas tramas de maneira superficial e não possuem enredos fortes, mas estão ali para responder os pedidos por representatividade, principalmente em novelas brasileiras. Isso a gente já conhece bastante, certo? Mas também existe um outro fenômeno negativo de representação LGBT chamado queerbaiting, o tema do Vamos Polemizar de hoje.
Em uma tradução livre, o termo pode significar “isca gay”. E o que seria isso? Algumas produções audiovisuais, em especial, séries prometem narrativas LGBTs e deixam a entender que dois personagens do mesmo sexo podem se envolver afetiva e sexualmente ao longo da história. No entanto, isso nunca se concretiza, tornando-se só uma ilusão planejada pelos roteiristas e produtores para atrair a audiência LGBT, como nas séries Sherlock e Once Upon A Time.
De fato, o queerbaiting pode ser muito sutil e, por isso, polêmico. Às vezes, não notamos que ele existe porque nos satisfazemos com qualquer representação já que buscamos nos ver refletidos nas telonas, telas e telinhas, certo? Dessa forma, a trama ganha a audiência LGBT e não perde a de pessoas retrógradas que não estão inseridas em um ambiente plural.
Ganhar a parcela de audiência LGBT significa ganhar um público que movimenta dinheiro, principalmente no cenário pop. E, claro, os produtores estão de olho nisso. O queerbaiting e o pink money caminham de mãos dadas. Por isso, a prática é considerada perversa. E também por ser um gatilho desleal que reforça tabus, como o de LGBTs não poderem demonstrar afeto publicamente. Além disso, inviabiliza pautas importantes e reais: por que não se pode naturalizar romances LGBTQIA+ nas séries (e na vida real)?
Agora, vamos analisar os dois casos já citados aqui no texto para compreender como funciona na prática. Um exemplo de queerbaiting gay em Sherlock e outro lésbico em Once Upon A Time.
Johnlock: um (quase) casal polêmico
Se você fez parte do fandom da série Sherlock, produção da BBC, que foi ao ar entre 2010 e 2017, provavelmente está familiarizado com o termo queerbaiting. O famoso casal principal, presente em diversas adaptações ao longo da história, Sherlock Holmes e John Watson formava, para muitas fãs, um shipp: Johnlock. O detetive, interpretado por Benedict Cumberbatch, e o médico, feito pelo ator Martin Freeman, levantaram longas e calorosas discussões sobre suas respectivas sexualidades.
A série já nasceu em um contexto que muito se falava sobre a representação LGBT nos programas da BBC. No ano de 2010, um pouco antes da estreia, pesquisas da emissora revelaram que o público não estava satisfeito com a falta de personagens gays, lésbicas e bis nas produções - como lembra Gabriel Duarte no texto ‘Queerbaiting em Sherlock’. Portanto, não era absurdo imaginar que, uma vez que a própria BBC sinalizou que buscaria colocar algumas mudanças em prática, poderíamos ter uma versão de Sherlock na qual o detetive fosse homossexual.
Porém, não foi exatamente isso que aconteceu. Desde o primeiríssimo episódio vemos diversas referências à uma possível relação entre a dupla. Watson pergunta se Sherlock tem um namorado - após a negativa de Holmes sobre a existência de uma namorada -, Mrs. Hudson, senhora responsável pelo apartamento em que ambos passam a morar juntos, insinua que eles poderiam ser um casal. Ao longo da série, essas provocações não diminuíram.
E os fãs logo pescaram a isca de que poderia haver algo mais ali. O que, além de ser uma releitura bem interessante - porém não original, já que diversas teorias de anos atrás acreditam na homossexualidade de Sherlock -, ajudaria um pouco a solucionar a falta de representatividade na BBC. Os shippers enlouqueciam, lotavam as redes sociais de teorias e sites com fanfics sobre o “casal”. A americana Rebekah tomou um passo adiante e criou um canal no Youtube, Rebekah TJLC Explained, dedicado apenas a consolidar e provar a teoria de que, sim, John e Sherlock eram apaixonados um pelo outro.
O fato de Mark Gatiss, um dos criadores e roteiristas da série, ser abertamente gay e ter falado algumas vezes sobre a necessidade de haver mais casais LGBT na TV intensificou, ainda mais, essa narrativa. Olhares, declarações e um amor que nenhum dos dois personagens conseguiu ter com mais ninguém - nem mesmo John com sua esposa por algumas temporadas - ajudaram a alimentar a expectativa dos fãs.
Porém, nada se concretizou ou se tornou canônico - termo usado na teoria queerbaiting. Gatiss, inclusive, falou há alguns anos que preferia apenas “flertar com o homoerotismo” em Sherlock e tanto ele, quanto Steven Moffat, outro escritor da série, afirmaram diversas vezes que isso não se passava de teoria da conspiração de fãs. Mas, se isso era só “forçação de barra” dos shippers, por que, tantas vezes, ainda víamos uma clara insinuação de romance? Por que, no trailer na última temporada, mostraram o que, na época, parecia ser um Sherlock se declarando para John? Queerbaiting.
Sendo um casal ou não, é fato de que as fãs que torciam para Johnlock carregavam grande parte da série nas costas. Claro que não eram todos os espectadores da produção que acreditavam no shipp, mas também, é inegável que esses eram uma parcela considerável. Parcela, inclusive, que comprava merchandising de Sherlock, que lotava a internet sobre conteúdos da série, que ligava a TV ou baixava os episódios rapidamente para assistir às novidades.
Por isso, apesar de não terem um Sherlock ou Watson gay - seja pelo preconceito da emissora ou até mesmo medo dos próprios produtores - era vantajoso insinuar a existência desse casal, já que isso alimentava o coração desses fãs. Fãs assíduos que estavam prontos para consumir e aumentar a repercussão da série.
Sherlock é, definitivamente, um exemplo que não pode faltar quando falamos de queerbaiting na televisão. Mas, esse caso está longe de ser o único.
SwanQueen é real?
Outro grande exemplo de queerbaiting acontece na série Once Upon A Time. Para quem não conhece, a história é basicamente uma mistura de vários contos de fadas ao redor de uma trama principal. E que trama é essa? Henry descobre que é filho adotivo de Regina (Rainha Má) e biológico de Emma Swan e que só as duas tem os poderes necessários para quebrar a maldição que assola a cidade. De início, as duas vivem brigando pelo afeto e atenção do filho, enquanto tudo que ele quer é viver em paz com as duas mães. Uma família com duas mães. Sabe o que é isso, né?
Mas até aí você pode alegar que foram as fãs LGBTQIA+ que se viram representadas e criaram uma tensão e atração onde não tem. E poderíamos concordar, se os roteiristas, produtores e editores não tivessem se utilizado de manobras e artifícios para reforçar essa narrativa. Além do clássico caso de “pessoas que se odeiam, mas no fundo se importam uma com a outra”, é evidente as trocas de olhares, os diálogos com duplo sentido e os truques de gravação e edição geralmente usados para criar uma atmosfera de romance.
Mesmo que SwanQueen (Emma Swan + Evil Queen) nunca tenha sido considerado um casal oficial pela série, a equipe sabia muito bem que o ship ganhou por dois anos seguidos a enquete do site AfterEllen que premiava os casais mais queridos das séries. Apesar de ninguém da equipe ter assumido que era, de fato, uma estratégia pensada, as atrizes já deixaram entender em mais de uma ocasião que essa tensão era proposital e Lana Parilla (que interpreta Regina/Rainha Má) até mesmo chegou a demonstrar que torcia para o casal.
O queerbaiting e outras práticas de representatividade rasa das vivências LGBTQIA+ nas produções audiovisuais não podem, nem devem continuar. Ao invés de contribuir para colocar em pauta dilemas LGBTs, acaba produzindo um efeito contrário de maior invisibilização, como o apagamento lésbico e bissexual, e o reforço de tabus. Felizmente, cada vez mais, também vemos mais séries que buscam retratar personagens LGBTs de maneira coerente e correta em relação ao que de fato acontece no “mundo real”. Que tal dar mais audiência a elas?
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