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Nicole Maines escreve carta aberta em resposta a declarações transfóbicas de JK Rowling

Nicole Maines, ativista trans e atriz conhecida por interpretar Sonhadora em Supergirl, publicou nesta sexta-feira (12) uma carta aberta a JK Rowling na revista americana Variety, em que explica a luta trans e o direito de ocupar espaços públicos sem ser vista uma “predadora” (confira o texto completo traduzido ao final da matéria). A declaração foi feita após a autora de Harry Potter voltar a fazer comentários transfóbicos na Internet.


JK Rowling publicou uma piada ofensiva sobre o termo “pessoas que menstruam” (acho que existe um nome para isso… Mulheres?, ironizou ela) no Twitter na última semana, o que foi suficiente para provocar críticas sobre sua atitude transfóbica. Artistas da franquia de Harry Potter, como Evanna Lynch, Emma Watson, Daniel Radcliffe e Eddie Redmayne, repudiaram os comentários de JK e, em resposta, a autora publicou nesta quarta-feira (10) um longo post em seu blog pessoal (leia à sua própria conta e risco).


Nele, JK explica basicamente que liberdade de expressão existe e ela pode usá-la para defender seu ponto de vista de que a inclusão de mulheres trans em espaços “femininos” (como banheiros, por exemplo) ameaça as mulheres cis. Vale lembrar que essa não é a primeira vez que JK Rowling faz comentários transfóbicos: em dezembro, ela tuitou em defesa de uma mulher que havia sido demitida por publicar conteúdos transfóbicos e preconceituosos nas redes sociais.


A visão de JK Rowling é claramente transfóbica e equivocada, e o Telas a rejeita completamente — mulheres trans são oprimidas pela sociedade cis e devem ser acolhidas pelo movimento feminista justamente pelo fato de ele defender o direito de todas as mulheres. O timing das declarações não poderia ser pior: em junho, comemoramos o orgulho LGBTQIA+ (lembrando que a sigla T é de transexuais), e comentários de ódio (travestidos de “argumentos” e “opinião”) como os de JK Rowling apenas provam a necessidade de reflexão e de ouvir as pessoas da comunidade LGBTQIA+.


Quem melhor do que uma pessoa trans para explicar o quão preconceituosa é a perspectiva de JK Rowling? Nicole Maines é ativista dos direitos das pessoas trans, além de interpretar a primeira super-heroína transexual da TV na quarta temporada da série Supergirl. Diante das atitudes de JK Rowling, a atriz decidiu apontar falhas em sua argumentação, defender a causa trans e explicar como fãs de Harry Potter podem lidar com tal discussão.


Confira a seguir a tradução completa da carta aberta de Nicole, segundo publicada na Variety.


Nicole Maines não passa frio porque está coberta de razão. Foto: Reprodução

Por que eu ainda sou fã de Harry Potter apesar da visão anti-trans de JK Rowling

Por Nicole Maines, para a Variety


Um problema do movimento e argumento de exclusão de pessoas trans se baseia na ideia de que mulheres trans são uma ameaça para a segurança das mulheres cis e que, ao permitir que pessoas trans existam no espaço público e possam participar da sociedade, nós [trans] estaríamos então tirando os direitos das outras mulheres [cis].


Eu conheço bem esse argumento. Eu estava no ensino fundamental quando o ouvi pela primeira vez. Na época, tinha se espalhado a notícia de que eu usava o banheiro feminino da minha escola em Orono, Maine. Uma garota, provavelmente algumas séries acima da minha, disse que ela tinha medo de usar o mesmo vestiário que eu porque “elx [no original, “they”; pronome pessoal sem gênero definido] vai me ver enquanto troco de roupa”.


Isso não fez sentido nenhum para a minha mentalidade de ensino fundamental — minha primeira reação foi “por que a gente estaria no mesmo vestiário ao mesmo tempo? Nós não somos nem da mesma turma”. Mas eu tinha ouvido pela cidade que muitas pessoas não queriam que eu usasse o banheiro feminino porque eu seria uma ameaça para as outras garotas.


Apesar de me permitirem ir a uma viagem de rafting com o clube de recreação da minha escola [um grupo focado em passeios ao ar livre e esportes radicais], eu fui proibida de dormir na barraca das minhas amigas. Na sexta série, partiu o meu coração descobrir que eu recebia tratamento diferenciado por ser vista como um predador perigoso.


Em artigo justificando seus comentários transfóbicos, JK Rowling escreveu: “Quando você abre portas de banheiros e vestiários para qualquer homem que pensa que se sente mulher… Então você abre portas para qualquer homem que deseje entrar. Essa é a mais simples verdade”.


Tem tanta coisa para desmentir nessa frase. Primeiro, não, essa não é a verdade, e ela não é simples. Ela está olhando para essa questão de uma forma muito extremista e absoluta, e você não pode abordar sexo e gênero de tal maneira absoluta.


O foco, de fato, desse argumento é o medo. Ele se baseia em uma ideologia antiquada e a transforma numa questão que convencemos a todos nós que é tão prevalente que não podemos permitir que certos humanos existam nos mesmos espaços que nós. E essa não é uma questão, de verdade: você pode descobrir, em 20 estados e em cerca de 200 cidades que adotaram políticas inclusivas de gênero, que permitir que pessoas trans frequentem espaços correspondentes a sua identidade de gênero não provoca nenhum impacto prejudicial à segurança pública.


Eu acho engraçado que o artigo de JK evoque a teoria da “câmara de eco” [situação em que informações são reforçadas pela comunicação e repetição dentro de um sistema definido. As fontes dominantes terminam sendo inquestionáveis, e opiniões diferentes são censuradas], porque eu acredito que é exatamente isso que perpetua o pensamento transfóbico, e que fez com que essas ideologias se fortalecessem todos esses anos, porque as pessoas que alegam ser “experts” e que pesquisam [teorias anti-trans] alimentam uma as outras. Eu achei surpreendente que JK Rowling disse ter feito toda uma pesquisa e conversado com psiquiatras e com membros da comunidade [trans]. Primeiro, eu adoraria ver comprovações disso. Segundo, eu acho que ela procedeu com sua pesquisa de maneira tendenciosa, porque eu concluí que maior parte da área médica discorda do raciocínio de JK.


Outra coisa que Rowling mencionou em seu artigo é que uma pessoa pode mudar sua certidão de nascimento sem fazer cirurgia de redesignação de sexo nem terapia hormonal — então qualquer pessoa poderia entrar em qualquer banheiro que quisesse. Isso é mentira.


Eu passei por anos de terapia e acompanhamento psicológico antes de permitirem que eu mudasse o gênero na minha identidade. Eu precisei de duas cartas de recomendação de dois psicólogos diferentes. Eu fui questionada por todas as outras pessoas em minha vida se eu me conhecia tão bem quanto acreditava. Ninguém suporta todas essas perguntas, todas essas intromissões na sua identidade só para ir ao banheiro e um estranho dizer “Ei, você não pode vir aqui. Você é só uma pessoa que um dia acordou e decidiu ser uma menina”.


Não, eu não “decidi” isso: eu tive que me comprovar e reforçar a minha identidade para estranhos e parentes e psiquiatras e amigos e pares e colegas e minha comunidade, várias e várias vezes.


E eu decidi fazer a transição cirúrgica. Nem todo mundo faz isso. Tem mil e uma razões para uma pessoa transgênero não realizar a cirurgia, e essas razões são da conta apenas da pessoa trans. Isso envolve a questão da anatomia corporal. Ninguém — seja cis, trans, homem ou mulher — deve nada do seu corpo para outra pessoa. Pessoas transgênero não devem e não precisam mudar seus corpos para serem consideradas aceitáveis. Não é isso que as mulheres têm lutado contra por décadas? A pressão de mudar a nós e a nossos corpos para agradar os outros? Esse é apenas mais um padrão de beleza irracional. E ele machuca todos nós.


Quando a Carolina do Norte adotou a lei anti-trans HB2 para banheiros públicos, o estado passou a policiar quem tinha permissão de frequentar o banheiro feminino, e muitas mulheres cis foram barradas — mulheres que não seguiam os padrões sociais de feminilidade e beleza. Policiar a aparência de mulheres e o que podemos fazer com nossos corpos é péssimo para todos nós, sejamos cis ou trans.


O que deixa tudo isso péssimo e decepcionante para mim é que eu era — e ainda sou — fã de Harry Potter. Eu sou muito da casa de Sonserina. Muitos fãs LGBTQIA+ estão tristes com isso. Os livros ajudaram muitos de nós a nos assumirmos e aceitarmos nossas identidades. Quantas crianças queer sonharam em sair do armário e aprender mágica? Na melhor das situações.


Os comentários de Rowling contradizem a mensagem de seus próprios livros — a lição de sermos mais fortes em união, a lição sobre inclusão, autodescobrimento, bravura e combate às adversidades. É contraditório ao mundo que ela criou.


Eu ainda sou uma fã, e te explico o porquê: porque esses livros e essas mensagens ainda existem e, independente das perspectivas pessoais de Rowling, ela não pode tirar isso da gente. Ninguém pode tirar isso da gente, e aquele mundo [de Harry Potter] agora pertence, na verdade, aos fãs. Ninguém pode mudar o fato de que Harry Potter te ajudou a sair do armário. Isso pertence a você.


Eu acho que é muito importante que reconheçamos e falemos sobre isso: no momento em que estamos testemunhando uma mudança histórica na luta para exterminar a opressão de vidas pretas, JK escolheu atacar pessoas trans e usar seu imenso espaço de fala para evitar essa discussão. O movimento trans e o Black Lives Matter compartilham uma luta parecida na batalha para sermos seguros em nossos próprios corpos, quando há tanta gente certa de que nós, por alguma razão, não merecemos ser tratados como pessoas. É exaustivo ter que explicar toda hora para pessoas, de forma simples, que nós merecemos direitos humanos e segurança tanto quanto vocês. E é disso que deveríamos estar falando agora. JK. Menina. Saca o clima.


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