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Foto do escritorBeatriz Cardoso

Lingerie é para quem? Mulheres dominam o mercado e buscam modelos reais

A lingerie costuma ser vista como aquela “roupa íntima mais elaborada” que você só usa para ocasiões especiais. Mas será que ela é só isso mesmo? A peça tem sido apropriada por empreendedoras mulheres nos últimos anos, para se livrar da perspectiva masculina e finalmente entregar um produto de mulher para mulher. A seguir, explicamos as questões em debate sobre lingerie, e trouxemos algumas iniciativas brasileiras para você conhecer.

Existe lingerie feminista? | Foto: Reprodução

Eu vou começar esse texto talvez trazendo informação até demais. Quando eu era mais nova e sem noção — basicamente, por volta de uns 10 anos —, eu não entendia as calcinhas que minha mãe e irmã usavam. Sério. Na minha caixola só vinha o questionamento “por que usar uma calcinha transparente cheia de renda?”. Qual era a graça disso? E, na minha época mais rebelde (sabe, aquele momento de vida em que os “aborrescentes” são chatíssimos porque questionam tudo e todos), eu burramente achava que vestir lingerie sensual assim era alguma forma de dar o braço a torcer e se submeter a homens.


Até que minha madrinha, que trabalha em Nova Friburgo (sabe, a cidade cheia de fábricas de roupa íntima), começou a me presentear com conjuntos de calcinha e sutiã todo Natal. Eu costumava ficar com o sutiã, e passava a calcinha cheia de laço e renda para a minha irmã porque não tinha como uma coisa pequena daquelas ser confortável, né? Eu não me lembro bem quando finalmente dei uma chance para as calcinhazinhas (que não eram tão pequenas assim, mas a meus olhos eram minúsculas), mas recordo com detalhes a minha surpresa ao descobrir que, uau, elas não eram desconfortáveis como aparentavam. A partir daí, comecei a comprar lingerie e guardá-la na minha gaveta, ao lado dos sutiãs “funcionais”.


Depois dessa introdução gigantesca (e não tão necessária para o texto, eu reconheço), chegamos à questão que suscitou a pesquisa desse Taburóloga: afinal, de onde exatamente vinha o meu pavor inicial por lingerie? Spoiler: eu descobri que não era algo exclusivo para mim.


Lingerie é para quem?



É inegável que, sim, o setor de lingerie tem um quê de machismo e agradar homens — e a indústria sequer se dava ao trabalho de esconder isso até uns anos. Deixa eu refrescar a sua memória: em 2011, a Hope lançou a série de comerciais Hope Ensina com a Gisele Bundchen em que ela aparece contando ao marido que bateu com o carro, estourou o limite do cartão de crédito com compras etc. Logo em seguida, ela aparece contando os mesmos casos, só que de lingerie, e a lição aqui é clara: vai contar para o marido que fez merda? Faça isso de forma sexy para não emputecê-lo. Legal, né, bem feminista isso (sarcasmo).


Dá para ver de cara muitos problemas com essa peça publicitária — ela é heteronormativa, reforça estereótipos de gênero, objetifica a mulher —, então não é surpresa que o Conar recebeu algumas denúncias criticando o comercial. A Hope se defendeu dizendo que “a propaganda teve o objetivo de mostrar, de forma bem-humorada, que a sensualidade natural da mulher brasileira pode ser uma arma eficaz no momento de dar uma má notícia e que, utilizando uma lingerie Hope, seu poder de convencimento seria ainda maior”. Hm.


O comercial da Hope terminou sendo uma síntese do motivo por que eu, inconscientemente, torcia o nariz para lingerie. Ele transmite a mensagem de que a roupa íntima desse tipo precisa ser vista por alguém — e não é pela própria mulher. E aí entram os sutiãs de enchimento que levantam e crescem silhuetas que sabemos que não são nossas — e não tem nenhum problema em ter peito caído e/ou pequeno; nós, mulheres, sabemos disso. A lingerie, por essa perspectiva, é encarada como um artifício para criar um novo corpo — um corpo mais desejável pelo homem —, e não “ressaltar nossa beleza já existente”.


Além disso, vamos focar na figura da Gisele por um instante:

Ninguém tem um corpo desses | Foto: Divulgação

Por acaso você tem esse corpo? Não, né? Na real, nem a própria Gisele tem esse corpo, porque não é segredo para ninguém que tem Photoshop aí nessa foto. Aí vemos que a lingerie também pode nos oprimir não só pela sexualização a partir do olhar masculino, como também pela imposição de um corpo padrão — alguém aí já viu um desfile da Victoria’s Secret?

Modelos da Victoria's Secret são perfeitamente perfeitas | Foto: Divulgação

É, pois é. E a Victoria’s Secret está em crise há uns anos já: quem aí não se lembra do chefe de marketing Ed Razek fazendo pouco caso da representatividade demandada pelo público?


Todo mundo fica falando do show da Rihanna [do Savage X Fenty]. Se nós tivéssemos imitado ela, seríamos com certeza acusados de ceder para agradar, porque nossa marca tem uma imagem bem específica, um ponto de vista. Tem uma História. [...] As garotas conquistam a sua posição na Victoria’s Secret com muito trabalho e esforço.

Deixa que eu traduzo para você essas aspas corporativas: galera, ninguém espera diversidade de verdade da Victoria’s Secret apesar dessa cobrança toda, e as modelos se esforçam muito mesmo para serem doentiamente magras, então parem de criticá-las porque é muito difícil chegar aqui, beleza? Só que a marca não contava com um detalhezinho: a revolta do público. Campanhas chegaram nas redes sociais, como no Instagram, com hashtags do tipo “ImNoAngel” (eu não sou um anjo, em referência ao termo das modelos da Victoria’s) e “WeAreAllAngels” (nós todas somos anjos), compartilhadas por contas com milhões de seguidores e gerando milhares de curtidas.


É então que vemos o começo da mudança de imagem da Victoria’s Secret (ironicamente, um ano depois daquela bomba que o idiota do marketing lançou): ela cancelou o show televisivo do desfile em 2019 (lembrando que era uma tradição transmitida desde 1995) para lançar a marca Bluebella, que busca “encorajar o amor-próprio e auto-respeito porque todo mundo merecer ser celebrada”.

Feed do Instagram da Victoria's Secret agora | Foto: Reprodução

Como vemos acima, o Instagram da Victoria’s Secret trocou as mulheres com caras afetadas por modelos sorridentes — e podemos até ver algumas pretas de cabelo cacheado! Mas a questão é que, apesar de oferecer produtos “femininos”, a empresa passou tantas décadas sob a gestão de homens (e continua até hoje, com o comando de Stuart Burgdoerfer), que as pessoas não caíram nessa nova imagem da Victoria’s Secret. E que público é esse que a marca tenta atingir com essa mudança de ares?


Por que você usa lingerie?


Piadas de millennials vs boomers à parte, a tal da geração Z (sabe, aquela que já cresceu com a Internet) equivale a cerca de 40% dos consumidores desde o ano passado. Isso porque parte das pessoas nascidas entre 1997 e 2010 já têm, a essa altura do campeonato, renda própria e estão saindo da universidade. Esse novo grupo de clientes têm desejos diferentes das gerações anteriores, é só ver os números: as vendas de sutiãs do tipo push up e de enchimento têm caído nos últimos anos, enquanto tops triângulo e sem bojo cresceram em popularidade no mesmo período.


A fundadora da marca britânica de lingerie Nubian Skin Ade Hassan explica que isso se deu pelas mulheres se livrarem da perspectiva masculina: “A principal mudança no setor de roupa íntima é a rejeição aos sutiãs de enchimento, optando por modelos que deem suporte aos seios, mas que sejam mais confortáveis”.


E como a produção de lingerie abriu mão do incômodo para finalmente fazer o que as clientes desejavam? Com mais mulheres no comando da indústria, é claro.


A aparência e a funcionalidade da lingerie têm sido dominadas por uma visão hegemônica criada por poucas pessoas, e está na hora das marcas encararem a roupa íntima por uma perspectiva mais diversa. Lingerie é a vestimenta que fica mais próxima da sua pele, é algo que você usa todo dia e deve cumprir muitas finalidades — mais do que qualquer outra roupa. Um top não pode ser só fofo, ele também deve dar apoio aos seios. É muita responsabilidade.

A fala acima, da editora da Vogue.com Steff Yotka, mostra que, da perspectiva masculina, a lingerie é algo que deve ser usado apenas para seduzir o marido, namorado, peguete etc. Por outro lado, as mulheres, que vivem isso na pele, sabem que a roupa íntima não precisa ser limitada a esse papel, daí a lingerie se tornou algo mais funcional — fala aí, você não usaria lingerie todo dia se ela fosse confortável e tivesse um preço acessível? As mulheres por trás da lingerie estão fazendo a transição de, em vez de vestir algo bonito e sensual para o outro, passar a usar para agradar a si mesma.

Lingerie não precisa ser "bonita" | Foto: Divulgação

Quem pode ser sensual?


Afinal, o que é ser sensual? Já criticamos aqui a imagem das modelos da Victoria’s Secret por promoverem um ideal gordofóbico, mas aquele padrão ofende ainda mais gente de vááários aspectos. A figura não abraça pessoas trans, nem pessoas com deficiência, nem grávidas, pretas, asiáticas… Quando dizem que usar lingerie é o ápice da sensualidade, como a pessoa deve se sentir quando não encontra uma roupa íntima que atenda suas necessidades?


Por isso, a lingerie não tem se tornado apenas feminista e confortável — ela tem ficado, também, mais inclusiva para acolher todo tipo de gente, e não só a branca magra da Victoria’s Secret. Tá aí de prova a Savage X Fenty, marca da Rihanna, como a própria demonstra: “Eu estou buscando pelas características únicas das pessoas, que não costumam ser destacadas no mundo da moda porque supostamente não se encaixam no conceito comum de lingerie e sensualidade”. E o desfile de lingerie da marca fala por si só sobre representatividade:

A inclusão também vem com questionamentos como “o que exatamente é nude?”, gerando a produção de uma maior variedade de tons de roupa íntima — porque, no fim das contas, o mundo inteiro não é cor de bege, né?

O que é "cor de pele"? | Foto: Divulgação

Ame ou odeie, mas a geração Z é conhecida por problematizar questões sociais (que os ignorantes chamam de “mimimi”), e ela serviu de combustível para proporcionar toda essa revolução. Vendedoras de lingerie contam que recebem muito mais engajamento e feedback positivo, por exemplo, quando publicam nas redes sociais fotos de mulheres “de verdade”, em vez de imagens retocadas no Photoshop.


A modelo plus-size Lotte Williams indica algo muito importante sobre o sucesso da Savage X Fenty: “Ela é a prova de que ser verdadeiramente diversificada não é difícil, e que as marcas devem parar de arranjar desculpas”. Tem muitas iniciativas do tipo por aí, por que não apoiar algumas delas? Segue a lista:


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Já pensou como a vida seria muito mais simples se a gente falasse mais sobre alguns tabus? Esse é um dos objetivos da categoria “Taburóloga”, que conta com textos quinzenais!

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