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"Ideias para mudar o mundo": sustentabilidade e pessoas reais em pauta, por Leila Savary

Por Filipe Pavão e Vanessa Barcellos


Chegou ao canal OFF no mês passado o "Ideias para mudar o mundo", primeira série de não-ficção do canal conhecido por assuntos esportivos. Apesar disso, como o nome sugere, o conteúdo aqui é outro: sustentabilidade, pessoas reais, protagonismo feminino, periferia e desigualdade social.



O Telas Por Elas conversou com a diretora Leila Savary para entender como foi unir a estética de documentário com o lúdico da animação para falar de temas sociais em um canal assistido predominantemente por homens. Inovador, né?


Poder trazer reflexões sociais, antirracistas, feministas, ambientais e políticas para um público que muitas vezes não escolheu ouvir isso foi um presente daqueles que eu quis abrir devagar para aproveitar todos os momentos, pensar e escolher quais palavras, quais imagens usar.

No total, o projeto traz 24 personagens de diversas regiões do Brasil. Alguns deles são: Lívia Suarez, que combinou empreendedorismo social e inovação para criar bicicletas, equipamentos e espaço para mulheres negras; a La Frida Bike, um polo de ativação cultural no Pelourinho, na Bahia; e Regina Tchelly, criadora do Favela Orgânica, que ecoou do Morro da Babilônia no Rio de Janeiro até Milão, misturando gastronomia de qualidade com sua técnica de aproveitamento integral dos alimentos.


O programa é exibido toda quinta-feira, às 21h30, pelo canal OFF. É possível todos o episódios lá no Globoplay também. A produção é da Costa Blanca Films.


Confira o papo com a diretora Leila Savary:


- Você poderia nos contar um pouco mais de onde surgiu a inspiração para o "Ideias para mudar o mundo"?


A proposta de misturar animação com documentário veio junto com o briefing do canal, com o pedido de criação da série. Recebemos a demanda de criar uma série que trouxesse o assunto sustentabilidade pela primeira vez no canal, com propriedade, seriedade, consistência, mas também leveza. Por isso, pediram que a gente pensasse em uma forma de trazer o público do canal para os temas abordados, sacudi-los com as novas informações e realmente despertar interesse. Já estávamos há um tempo fazendo alguns pilotos de animação para o canal Off e a Globo considerou uma boa oportunidade para criarmos um formato inédito, misturando as duas linguagens com o desafio de não infantilizar, manter o gênero documental para o público jovem adulto.


Me pareceu interessante usar a animação a serviço dos temas (complexos e profundos demais para serem aprofundados em 28 minutos por episódio). Pensei que poderíamos trazer a informação, o factual, o contexto histórico através de colagens bem humoradas e trazer leveza no texto, na locução. Não queria passar de maneira superficial pelos temas e decidi que a animação estaria a nosso serviço neste sentido. Queria trazer algo inédito, usar o espaço de tela que tínhamos ganho pra realmente fazer a diferença. Assim surgiu a ideia de usar os blocos de animação para informar e os blocos documentais para inspirar. Foi a solução que encontrei para costurar as demandas que recebi e fortalecer o propósito do conteúdo: unir animação e documentário, público e linguagem do canal, trazer novidade, reflexão, novos questionamentos, novos personagens, sair do raso mas fugir do acadêmico, trazer representatividade e verdade.


Para isso precisaria também de personagens fortes e interessantes o suficiente para sustentar uma narrativa em primeira pessoa com começo, meio e fim, sem o intuito de ensinar, nem empurrar nada. Queria que o público se sentisse entrando dentro da cabeça desses personagens e instigado a mudar a lente para enxergar o mundo através do olhar de cada um deles. Pra isso me inspirei em alguns docudramas. Percebi que precisaria fazer uma pesquisa densa sobre o elenco selecionado e junto ao roteirista, esculpir a história que gostaríamos de criar, daquele personagem. Entendi que haveria espaço para criarmos cenas baseadas na vida real deles, provocamos situações. Decidimos então roteirizar cena a cena de cada mini doc. Os roteiros do Thiago ficaram tão legais que fiquei bem apegada a eles e às cenas propostas, confesso. Segui quase à risca todos eles e em alguns demos um trabalhão pra nossa equipe de produção! Gravamos cada história em pelo menos 2 diárias cada (o que fez com que para cada episódio tivéssemos pelo menos 8 dias de gravação - algo muito fora da curva para os programas do canal off que tem episódios gravados em 2 dias normalmente). Tivemos mais de 50 diárias ao topo para 6 episódios.



Como foi o processo para encontrar as histórias desses 24 personagens brasileiros?


Contamos com um extenso período de pesquisa que contou com uma equipe especializada e muitos meses de trabalho entre pesquisa, entrevistas, estudo e roteirização. Não foi muito fácil porque fizemos questão de ir atrás de quem justamente não estava na mídia, ou que estivesse de maneira espontânea, orgânica. Na seleção de personagens para esta série, priorizamos aqueles que atuavam em comunidades e periferias. Para nós, não faria sentido mostrar o que o público já conhece ou tem acesso. Então fomos também muito no boca a boca, nos conectando com muitas pessoas para conseguirmos chegar em quem precisávamos chegar. O objetivo era dar voz e protagonismo a quem estava atuando em áreas marginalizadas e longe das metrópoles, sem suporte de mídia, agentes transformadores, apoiados em propósito e trabalho. Em relação ao perfil, para nós, era muito importante que trouxéssemos também novos corpos para ocupar lugar de protagonismo no canal. Essa era a oportunidade para fazer a diferença também neste sentido.


No fim, encontramos muito mais personagens do que a série comportava, pessoas incríveis. Essa acabou sendo a parte mais complexa, a seleção. Alguns fatores impediram que a gente contemplasse todo mundo que gostaríamos, como orçamento e compromisso com identificação com o público do canal. Não adiantava a gente trazer um discurso muito longe do que o público alvo estava acostumado a ver. Realmente, se a gente quer atingir, precisamos criar estratégias e pensando nisso, optamos por trazer uma mescla entre pessoas de classes sociais diferentes, trajetórias diferentes, origens diferentes, porém unidas no mesma propósito: na desconstrução de padrões, no abrir e ocupar espaços, na luta pela regeneração do planeta e pela equidade social, conscientes de seus privilégios ou não, abertos para o diálogo.


Nós consumimos um pouco de esporte e sabemos que é raro encontrar conteúdos assim em canais esportivos. Pra vocês, qual é o principal objetivo de levar esse projeto a um espaço que é, ainda, predominantemente consumido por homens?



É literalmente fazer pensar, instigar a tirar o canal Off do mudo, sabe. Só que o desafio era como. A pessoa que se interessa por consumir conteúdo esportivo, se interessa por temas como natureza, vida ao ar livre. Mas a gente traz aqui, com essa série, uma proposta de ligar os pontos. "Você que adora viajar, fazer trilha, ir pra praia, praticar esportes radicais, o que você está fazendo, pensando, questionando para preservar essa vida que você gosta de levar ou até para parar de destruir. Então vamos lá, vamos estudar, deixa eu te explicar de onde vem os problemas e quais são eles".


Ganhar espaço para falar diretamente com um público majoritariamente masculino e poder escolher a maneira de falar é uma grande oportunidade para toda a equipe desta série. Poder trazer reflexões sociais, antirracistas, feministas, ambientais e políticas para um público que muitas vezes não escolheu ouvir isso, foi um presente, daqueles que eu quis abrir devagar pra aproveitar todos os momentos, pensar e escolher quais palavras, quais imagens usar. Desconstruir padrões e provar a força desses personagens com histórias potentes é uma revolução. É revolucionário mulheres, mulheres pretas, corpos periféricos protagonizarem este espaço de tela, para este público. E acho que, com muita estratégia, conseguimos chamar o espectador da roda. Se você quer realmente dialogar, esse é o começo.


Durante a minha trajetória como diretora nos últimos 5 anos, inserida em um nicho predominantemente feito por e consumido por homens, já experienciei inúmeras situações hostis (e isso porque sou uma mulher branca, padrão, privilegiada - bem consciente disso). E há cinco anos atrás era bem mais complexo. Os executivos em uma PPM me interrompiam sem parar ninguém falava nada. Tudo podia, era bem mais opressor. Quando acabava a reunião as mulheres se reuniam em uma sala comigo para se desculparem pela situação constrangedora. Já ouvi algumas vezes o jargão "onde está o diretor" e quando falo que "sou eu", sou analisada de cima a baixo - às vezes seguida de algum comentário/piadinha infeliz.


A figura de uma mulher no comando incomoda demais, já me acostumei a conviver com isso. Por isso, o feminismo me salva todos os dias. Quando preciso encarar um ambiente de trabalho opressor, um cliente misógino, além de reunir uma equipe muito parceira, levo Bell Hooks na bolsa, meus mantras no caderno, uma espécie de kit sobrevivência pra poder voltar pro eixo o tempo todo. Porque a estrutura é feita mesmo pra te desestabilizar. Precisamos estar muito atentas o tempo todo. É cansativo, pra caramba. Mas sempre enxerguei esse desafio como uma oportunidade. Geralmente respiro fundo, e vou, equipada, colocando meus limites e criando minhas estratégias porque sei onde quero chegar.


"Ideias pra Mudar o Mundo", para mim, é sobre isso, sobre uma oportunidade de dialogar e convidar as pessoas para uma reflexão importante. Uma reflexão que vivi junto com toda a equipe e elenco durante os dois anos de processo dessa série. Estamos em um momento muito importante enquanto sociedade. Não há mais tempo para romantismo, para hipocrisia, são muitas urgências gritando. Só não vê e não ouve quem não quer. A estrutura na qual estamos inseridos tem vigas muito profundas sustentada por inúmeros sistemas opressores. É preciso estudar, conhecer, transitar, se informar e se aliar pra gente mudar alguma coisa. Não pra pra querer mudar o mundo sem pensar em começar por si mesmo.



Quais foram os maiores desafios desse projeto?


O tempo e o orçamento. Tínhamos um orçamento bem enxuto que não comportava um projeto do tamanho que eu gostaria que ele tivesse. Foram mais de 50 diárias para 6 episódios de 28 minutos, com muito deslocamento e produção. Isso demandou um tempo de projeto que foi complexo fazer caber em orçamento. Tivemos um trabalho intenso de produção executiva e flexibilidade da equipe para fazer acontecer.


Em relação ao meu trabalho criativo, o pouco tempo que tive para ganhar intimidade com os personagens e fazê-los acreditar que podíamos contar suas histórias através de cenas muitas vezes não orgânicas. Muitos deles nunca tinham sido filmados, havia um certo medo da câmera. Conseguir que eles se soltassem e se entregassem às minhas propostas em um curtíssimo espaço de tempo, sem trabalho prévio de convivência com eles. Para me munir de todas as possibilidades, estudei sobre cada um antes do encontro, conversei antes com a maioria por vídeo.


Apresentei a proposta da gravação, mas em seguida assumi o lugar de escuta, mostrando que a partir daí eles poderiam me guiar e eu estaria ali para provocar certas situações e orientá-los para trazerem o melhor de si. Juntos nos divertimos criando as histórias de cada um. Foram encontros tão lindos que acabei fazendo amizade com grande parte do elenco da série. Tivemos uma troca bonita, criamos laços mesmo. Aprendi demais com essa gente.


Tenho muito orgulho de onde chegamos, do resultado de um trabalho em equipe de muita muita dedicação, muita desconstrução, muita vontade de entregar o melhor de todos nós e de aprender com o processo. Foi muito trabalhoso, mas os dois anos de produção valeram muito a pena, certamente não teríamos chegado neste resultado, sem este tempo de aprofundamento.


Quais são os planos para o futuro desse projeto? Mais temporadas? Poderiam nos dar alguns spoilers?


Adoraria fazer muitas temporadas desse projeto porque considero necessário, promissor e acho que supre uma demanda do mercado. Ainda tem muita história pra contar.


Mas sinceramente, se Ideias para Mudar o Mundo abrir janelas, transbordar as telas para ações efetivas, provocar reflexões importantes, gerar microrrevoluções ou até chamar a atenção de empresas privadas, estou feliz. Plantamos uma sementinha. Se a partir daí mudanças se desdobrarem de maneira mais orgânica, pra mim, valeu a pena.

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