top of page
Foto do escritorBeatriz Cardoso

Helter Skelter: não se nasce bela, torna-se bela

Helter Skelter é um mangá josei da autora Kyoko Okazaki cujo enredo, centrado na top model Lilico, aborda o mundo das celebridades e a pressão constante de ser bonita e jovem. A história foi publicada serialmente no Japão pela revista Feel Young de julho de 1995 a abril de 1996, até ser compilada em um volume único pela Editora Shodensha em 2003. Helter Skelter só chegou oficialmente ao Brasil em 2016, com publicação pela NewPOP Editora.


A crítica a seguir é livre de spoilers, exceto por breves menções a algumas cenas não tão surpreendentes assim (então prometo não estragar nenhuma surpresa!). Mais do que comentar a história de Helter Skelter, este texto busca apontar aspectos relevantes da obra de Kyoko Okazaki e ressaltar a crítica social promovida pelo trabalho da mangaká.


Conheçam Lilico, protagonista de Helter Skelter. Foto: Divulgação

Primeiro, quem é Kyoko Okazaki?


Kyoko Okazaki (nascida 13 de dezembro de 1963) é conhecida por conquistar espaço no mundo dos mangás na época em que apenas obras de autores masculinos ganhavam prestígio e reconhecimento da crítica generalizada. Com sua produção nos anos 1980 e 1990, Kyoko tinha uma apresentação e apelo diferenciados por trazer ao mainstream temáticas desprezadas, como homossexualidade, idolatrismo e a vida suburbana de Tóquio.


Críticas à sociedade japonesa marcaram os trabalhos de Kyoko, e isso trouxe à artista um lugar próprio no mercado de mangás femininos na época em que as histórias não eram tão “intensas” assim. Kyoko Okazaki se enquadra no gênero josei, que consiste em produções focadas no público feminino adulto, com histórias feitas por mulheres para mulheres.


Helter Skelter é considerada a maior obra da carreira de Kyoko. O lançamento prometia que a mangaká teria trabalhos ainda mais promissores à frente… Mas, um mês depois da conclusão da história, Kyoko Okazaki foi atropelada por um motorista alcoolizado. A artista passou meses em coma e sofreu ferimentos graves com o acidente. Para explicar essa questão, nada melhor que exibir a última página da edição brasileira de Helter Skelter pela NewPOP:


A vida imitou a arte, no caso de Lilico e Kyoko. Foto: Reprodução

Helter Skelter retrata como celebridades podem estar no topo da sociedade um dia e, no outro, serem completos desconhecidos. A protagonista Lilico sofre distúrbios psicológicos por não aceitar a passagem do tempo e encarar que, eventualmente, ela ultrapassará o prazo de validade curto das modelos no mundo da moda.


Por ironia do destino, a própria Kyoko pareceu prever seu futuro na imagem de Lilico — a mangaká ainda é lembrada por seu trabalho notável e de relevância indiscutível, mas nunca mais pôde produzir e se dedicar ao seu ofício com o mesmo afinco de antes.


Não se nasce bela, torna-se bela


Helter Skelter acompanha a deterioração da mente de Lilico, uma top model que passou por inúmeras cirurgias plásticas para ter o corpo “perfeito”. O estopim de sua loucura é a epifania de que sua carreira está prestes a chegar ao fim, já que o público se cansa fácil das celebridades — e beleza é algo passageiro, já que a juventude (aqui, sinônimo de belo) tem prazo de validade.


O simples ato de abrir o mangá de Helter Skelter tem significado por si só. As primeiras páginas coloridas, de papel couché (diferente do offset preto e branco usado no restante da revista), trazem mulheres “lindas” no seu auge, como que posando para um ensaio fotográfico de moda — mas há algo em seu olhar, em seu sorriso, que denuncia que nem tudo é tão perfeito como aparenta ser...

Elas são lindas, mas há algo de errado... Foto: Reprodução

Esse clima já é suficiente para começar a leitura de Helter Skelter. O traço de Kyoko é simples e traz uma aparência de “esboço” ao desenho, mas ao mesmo tempo é louvável de elogios como ela consegue formar imagens claras com pouquíssimos riscos. Na verdade, esse pode ser até um artifício da autora para fortalecer o questionamento de “o que é a beleza?”, pergunta tão presente na obra.


Afinal, em vários momentos de Helter Skelter é difícil determinar quem deve ser a “bonita” da cena, digna de aparecer nas capas de revista e na telinha da sua casa. Lilico, lado a lado com sua assistente Hada e sua empresária Mama, parece ser apenas mais uma garota comum, como suas colegas de trabalho.


Entretanto, a forma como Lilico foi embalada e rotulada com plásticas, tinturas e uma elaboração de imagem, dá-lhe o título de top model. Como é explicado no próprio mangá: “A beleza dela não passa de uma montagem. É como se fosse a manifestação dos nossos desejos” (p. 120).


Lilico, no centro, deve ser absurdamente linda, mas os rabiscos de Kyoko nos confundem. Foto: Reprodução

É como se Kyoko Okazaki estivesse se perguntando, pelos visuais, quem decide quem representa o belo na mídia? E esse belo midiático é, de fato, belo? A quem esse padrão atende? Como ele foi parar nos veículos de comunicação? O mangá faz sutis referências a como o padrão de beleza europeu (branco, loiro, magro, olhos claros) rege o Japão, quando Lilico é elogiada por parecer com Brigitte Bardot, Jean Shrimpton, Raquel Welch… Mas, peraí, todas essas mulheres são caucasianas… Lilico não é (de etnia e nacionalidade) japonesa?!


Podemos concluir duas coisas com a cena acima: primeiro, que celebridades sob escrutínio público costumam ser despedaçadas como carnes no açougue para que cada parte do seu corpo seja julgada minuciosamente (ato representado visual e inteligentemente por Kyoko com a figura de uma espécie de hipogrifo); segundo, essas reticências denunciam que, afinal, Lilico é bela, mas é de aparência ordinária, pois em uma só fala ela foi comparada com mais quatro pessoas.


Essa última denúncia manifesta como o padrão de beleza estabelece tantos rostos parecidos e termina com a originalidade. Em Helter Skelter, a noiva do ex-namorado de Lilico vai à mesma clínica de plástica que a protagonista e termina com um rosto bizarramente semelhante ao de Lilico — o que, diga-se de passagem, perturba profundamente o ex da top model. Mas não precisamos ir tão longe para constatar essa realidade: basta abrir o Instagram e conferir os perfis das influenciadoras de beleza.


Foto: Reprodução

O storyboard de Kyoko é fluido e coerente, além de intercalar as cenas de diálogo com metáforas e figuras de linguagem mencionadas capítulos atrás. É clara a minuciosidade da mangaká na elaboração do enredo (seja no aspecto textual ou imagético). Além disso, Kyoko emprega frases “de efeito” que terminam dando um respiro ao leitor e intensificando ainda mais o clima de suspense da história. Um exemplo ótimo disso é a frase inicial: “risadas e gritos são muito parecidos”.


Este é um alerta logo de cara para o sofrimento de Lilico. Não se nasce bela, torna-se bela. E a modelo aprendeu isso da pior forma possível, presa a um ciclo infinito de plásticas para impedir a deterioração de seu corpo, que parece gritar silenciosamente e desmoronar diante de tamanha artificialidade. O mangá alterna ataques de Lilico com a reação do público ao seu trabalho, e os comentários venenosos, como “ela é linda, mas não é alta”, contrastam com as cenas da modelo em noites solitárias e perturbadoras.


O fim da juventude e a iminência do prazo de validade não são tormentos vividos apenas por Lilico, mas comum a todas as mulheres do showbiz. Amy Schumer é uma comediante um tanto quanto polêmica, mas a esquete “Last Fuckable Day” (2015) da artista traduz bem como, a partir de determinada idade, mulheres param de ser vistas como objetos de desejo e atração no entretenimento. O ritual hilário à la “funeral viking” retrata o “dois pesos, duas medidas” que rege a fama, com mulheres ameaçadas por algo natural como a passagem do tempo, enquanto que os homens não perdem prestígio algum com a velhice.


Você consegue imaginar alguém falando "mas hoje o George Clooney não passa de um velho"? Pois é, eu também não. Foto: Reprodução

Apesar de Helter Skelter retratar bem as angústias e mortificações a que Lilico é submetida contra a própria vontade, a personagem ainda dá nos nervos de nós, leitoras. Isso porque Lilico age feito uma criança mimada e imatura, que nunca recebeu um “não” na vida. Por exemplo, na primeira cena do mangá ela cospe água na cara de sua assistente Hada, quando esta falha em lhe entregar uma garrafa da marca de sua preferência.


Lilico é abusiva e violenta com seus funcionários, mas também mostra uma faceta de criança desamparada (que pode trazer empatia) com zero tato social por não experimentar momentos comuns da vida, como um almoço em família ou um passeio com a irmã caçula. Sim, Lilico poderia “simplesmente” aceitar a passagem do tempo e compreender que a velhice vem a todas nós (e isso não é algo ruim), mas é aí que entra a crítica mais visceral de Kyoko Okazaki: somos nós que oprimimos, de maneira indireta, as celebridades.


A culpa é de todas nós: uma reflexão


A fama existe graças ao consumismo, e nós somos o combustível dessa máquina chamada showbiz, comprando e devorando os produtos midiáticos. Também temos responsabilidade direta com a cobrança da imagem das celebridades: elas devem agir de determinada maneira e aparentar determinado visual. Isso resulta em uma artificialidade e idealização que (surpresa) não corresponde ao real.


Como a própria Lilico explica, “o motivo das pessoas frequentemente acharem os famosos interessantes, é porque eles são uma anomalia como o câncer” (p. 119). O que acontece com famosos que divergem de nossas expectativas? São brutalmente criticados nas redes sociais, vide a reação do público à aparição de Kendall Jenner no tapete vermelho do Globo de Ouro de 2018 com o rosto com marcas de acne.


Por que é tão absurdo vermos acne em Kendall Jenner? Foto: Reprodução

A anomalia cancerígena das celebridades é a face imaculada e perfeita. Kendall, que vive no topo de um pedestal, não tem o direito de apresentar algo tão ordinário como espinhas. Nós acreditamos nessas ilusões e as consideramos reais e, não satisfeitos, ainda cobramos das figuras públicas um desejado comportamento e aparência.


Kyoko Okazaki aponta o dedo na nossa cara com Helter Skelter: sentiu empatia por Lilico? Então reveja suas ações e pensamentos. Você topa esse desafio?



Helter Skelter (ヘルタースケルター)

Mangaká: Kyoko Okazaki

Gênero: Josei, suspense

Publicação: NewPOP Editora (2016)

Páginas: 320 (volume único)

Preço de capa: R$ 24


____

Quer saber nossas impressões sobre diversas obras das mulheres na cultura? Cinema, música, literatura, teatro e muito mais. Tudo isso, duas vezes por semana, na categoria 'Crítica'.


1 Comment


Crítica muito bom! Estou escrevendo um artigo sobre o filme e amei!

Like
bottom of page