"Eu vos declaro marido e mulher": os simbolismos não tão ocultos do casamento
Maio, mês das noivas! Se não estivéssemos em plena pandemia, agora seria o momento de ir a casamentos, né? Só que não. Como muita coisa neste país colonizado, importamos vários hábitos culturais que não correspondem à nossa realidade, então é importante questionarmos esses costumes para compreender sua origem e saber como podemos reinventá-los.
Por exemplo, casar de branco é obrigatório? Por que o pai deve levar a filha ao altar? Seja você alguém que não planeja se casar (como eu) ou alguém que sonha com o seu grande dia especial, devemos entender os significados por trás deste ritual social para dominá-los e deixá-los com a nossa cara — afinal, se temos o poder de escolhas, por que nos prendemos a tradições antigas?
Maio é o mês das noivas mesmo?
A resposta mais direta é não — pelo menos no Brasil. Segundo levantamento do IBGE de 2010 a 2015, dezembro é o mês em que acontece o maior número de casamentos, seguido por novembro e outubro. O último mês do ano é tão popular pela conveniência financeira: além de aliar a comemoração às festas de fim de ano (e às eventuais folgas do trabalho), os noivos costumam aproveitar o dinheiro extra do 13º para custear a cerimônia.
Para efeito de comparação, em dezembro ocorreu 51% mais celebrações brasileiras que em maio, que fica em 6º lugar no ranking de casórios. Mas de onde vem o título de maio como “mês das noivas”? A tradição tem várias explicações, indo desde a astrologia (em maio o Sol está em Touro, signo relacionado à fertilidade) até a religião (maio seria o mês de consagração de Maria, mãe de Jesus).
A explicação mais popular vem do clima: maio é o ápice da primavera no hemisfério norte, o que marca comemorações nos países nórdicos em homenagem às flores e à natureza em geral — e, inevitavelmente, a feminilidade é ligada a essas temáticas. Como bem sabemos, o Brasil está no hemisfério sul, então maio é marcado pelo outono (e as folhas caem no quintal) e pela queda de temperatura, o que explica por si só como tal tradição não emplacou aqui na prática por muito tempo, apesar de perseverar no boca a boca.
Ou seja, o “mês das noivas” é uma tradição que importamos sem considerar o contexto peculiar do nosso país — e é claro que esse não é o único costume incoerente que mantemos até hoje.
O significado por trás dos símbolos do casamento
[Os costumes mencionados a seguir referem-se apenas à concepção heterossexual e católico-europeia do casamento. As práticas da cerimônia mudam de religião para religião, de país para país, mas abordar essas diferenças culturais não é a proposta deste texto. A ideia deste Vamos Polemizar? é tomar a ideia hegemônica do casório e destrinchá-la para, então, desconstruí-la.]
Considerando que o casamento é uma instituição social que existe há séculos, e que seus significados e regras mudaram com o decorrer da História, não é surpresa constatar que boa parte dos simbolismos da cerimônia se tornaram obsoletos. Por exemplo, a tradição de jogar arroz nos recém-casados origina-se da crença de encorajar a fertilidade do casal, e hoje em dia sabemos bem que casamento não é sinônimo de filhos, já que maternidade e paternidade são escolhas. Há quem mantenha o costume, da mesma forma que também há noivos que optam por confete biodegradável para evitar desperdício e poluição.
Teoriza-se muito que o vestido branco representa a pureza da noiva, na época em que se casar virgem ainda era comum. Entretanto, a cor se popularizou mesmo com o casamento da Rainha Vitória da Grã-Bretanha em 1840, quando a monarca quebrou protocolo e abriu mão do prata da realeza para se casar de branco.
Outros hábitos foram ressignificados por motivos de estética: o buquê era originalmente feito de ervas e alho, e buscava mascarar o odor da noiva para afastar espíritos do mal. Hoje em dia ele é um “mero” acessório bonito, e há quem prefira não jogá-lo para não montar a cena degradante de mulheres lutando pelo buquê e reforçar a ideia de que “o sonho de toda mulher é se casar”.
Alguns aspectos do casamento não são tão inocentes assim, e denunciam o aspecto machista e inicialmente político de dizer “sim” para alguém — e vale mencionar que isso ainda é encarado dessa forma em alguns contextos. Não ver o parceiro até o momento da cerimônia era uma maneira de impedir a desistência de casamentos arranjados, e o véu da noiva exercia um papel importante nesse esquema de evitar que o rosto da mulher fosse exposto até o último momento.
Um dos principais atos machistas da cerimônia é o momento em que o pai acompanha a filha até o altar e a entrega ao noivo. Esse costume vem justamente dos casamentos arranjados, e da ideia de que o casório era uma transação de negócios em que o patriarca transfere um bem (no caso, a filha) para o próximo dono. Adorável. Claro, é a escolha dos noivos manter ou não essa tradição — a jornalista e youtuber Karol Pinheiro preferiu ir ao altar sozinha, mas há quem escolha ir acompanhada de ambos os pais, transformando o gesto em algo menos machista.
Há questões para além da cerimônia
Toda mulher é chamada de senhorita até se casar. Então, ela se torna uma senhora, e muito provavelmente assume o sobrenome do marido. A questão de mudar nome já é muito debatida e refere-se à ideia da mulher pertencer a outro homem por meio do casamento e, portanto, torna-se importante para este indicar seu direito de posse (lembrando que há mulheres que não trocam de nome e casais que mudam mutuamente, como foi o caso de Yoko Ono e John Lennon).
A transição de uma mulher de senhorita para senhora (enquanto homens nascem senhores, independentemente do estado civil) denuncia a mudança de importância da mulher no momento em que ela se alia a um homem — supondo que se trata de uma relação heterossexual, claro. Esse machismo não é exclusivo do português: na França, grupos feministas reivindicaram, em 2011, a remoção de “mademoiselle” (o nosso senhorita) de formulários oficiais. No ano seguinte, o título foi excluído de documentos do país.
Outra indicação de que uma mulher solteira seria “incompleta” é indicada na cerimônia pela fala “eu vos declaro marido e mulher”. Mulher pode ser sinônimo de esposa, mas homem… Homem pode significar pessoa do sexo masculino ou um ser humano genérico (ex.: “o homem é um animal político”), e se referir a ambos gêneros. Essa marca linguística é mais do que suficiente para mostrar como o homem é o padrão (da sociedade, da cultura, da língua) e possui poder de moldar as tradições para favorecê-lo — e o casamento é apenas uma dessas esferas sob seu domínio.
Mas a tradição é ruim?
Não necessariamente, já que nada é preto ou branco no mundo. O fato é que muitos hábitos do casamento auxiliam na criação de uma imagem determinada da cerimônia, que é diretamente ligada a conceitos machistas, uma vez que faz pouco tempo que mulheres têm ativamente ganhado poder para moldar e mudar os costumes.
Ser entregue pelo pai a outro homem ou vestir branco para enfatizar sua suposta pureza (afinal, que pureza é essa?) são conceitos machistas que veem a mulher como uma commodity cujas qualidades valiosas são definidas pela figura masculina (já discutimos antes sobre como o conceito de virgindade é uma construção social que não favorece as mulheres). Assim, a linguagem e a cultura são moldadas para incutir na mulher o sonho de se casar, e a disputa pelo buquê e o “vos declaro marido e mulher” são apenas alguns dos artifícios desse plano do patriarcado.
É preciso questionar os simbolismos e compreender suas raízes para sabermos se concordamos com eles. Não tem nada de mau em fazer um pouco de crítica. Por que o vestido branco? Por que ser levada pelo pai? Você acha isso adequado para a sua vida, para o seu "dia especial"? Karol Pinheiro foi sozinha ao altar. Ela questionou os simbolismos e, assim, foi capaz de customizar a cerimônia para que se adequasse o máximo possível aos seus desejos, visões e crenças.
Mais do que romper completamente com o tradicional, eu acredito que devemos entender que podemos mudá-lo segundo nossas convicções. E é assim que mini-revoluções acontecem e velhos pensamentos são largados. Por exemplo, nos policiarmos para falarmos "esposa" em vez de "mulher" pode, no futuro e em larga escala, auxiliar a "limpar" nossa língua de expressões machistas. Essas mudanças acontecem de pouco a pouco, e acho que a cerimônia de casamento pode ser um palco para promover essa desconstrução.
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A categoria "Vamos Polemizar?" traz assuntos do cotidiano com outras visões e questões. O objetivo é entender melhor alguns sensos comuns dados como verdade por tantas pessoas.
Beatriz, adorei o texto. Sabia que existia algum machismo em cerimônias de casamentos, mas não imaginava que eram tantos! Obrigada pelas informaçõe!