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Crítica: Presos que menstruam de Nana Queiroz

“Para o Estado e a sociedade, parece que existem somente 440 mil homens e nenhuma mulher nas prisões do país. Só que, uma vez por mês, aproximadamente 28 mil desses presos menstruam.Heidi Ann Cerneka


É com essa frase que o livro Presos que Menstruam de Nana Queiroz começa. A frase de Heidi Ann Cerneka, coordenadora da Pastoral Carcerária nacional, foi a principal inspiração de Nana para o título e tom do livro. No livro, a autora aborda histórias e mazelas pelas presidiárias, dando ênfase à forma que são tratadas dentro do sistema carcerário brasileiro, que ao meu ver tem grande influência do jornalismo literário, sendo bastante descritivo. Se você gosta de livros que propõem a você reflexões do começo ao fim, certamente Presos que menstruam tem que entrar na sua lista de leitura!


Quem é Nana Queiroz?


Nana Queiroz, autora de Presos que Menstruam. | Foto: Reprodução

Formada em jornalismo pela Universidade de São Paulo (USP) , Nana Queiroz é fundadora do Movimento #EuNãoMereçoSerEstuprada e da revista AzMina. A autora sempre se interessou por questões de gênero e em seus livros: “Você já é feminista: abra e descubra o porquê.”, “Presos que menstruam” e “Eu, travesti” a escritora aborda tais questões dando importância e visibilidade para assuntos e histórias que merecem e devem ser ouvidas. Conheça mais sobre Nana através de suas redes sociais: Instagram, Twitter, Facebook e LinkedIn.



O Livro "Presos que Menstruam."


Foto: Divulgação

No prefácio do livro, Nana conta os obstáculos que enfrentou para conseguir reunir informações e relatos como jornalista.(...) não era apenas o governo que nos impedia de falar sobre o assunto, mas porque também tabus são mantidos pelos que se recusam a falar sobre eles e a própria sociedade evita falar de mulheres encarceradas.” Assim, por exemplo, “quando um homem é preso, comumente sua família continua em casa, aguardando seu regresso. Quando uma mulher é presa, ela perde o marido e a casa, os filhos são distribuídos entre familiares e abrigos. Enquanto o homem volta para um mundo que já o espera, ela sai e tem que reconstruir seu mundo.”


Nana Queiroz entrevistou e conheceu mulheres de todas as regiões do país, escolhendo um estado por região. Na região norte, entrevistou paraenses, na região sul, foi ao Rio Grande do Sul, na região centro-oeste, escolheu Brasília, no nordeste, conheceu presidiárias da Bahia e no sudeste, permaneceu em seu estado, São Paulo. As histórias tem o enfoque em sete mulheres: Safira, Gardênia, Júlia, Vera, Camila, Glicéria e Marcela, todas as personagens possuem nomes fictícios.


As histórias das presidiárias, não apresentam uma ordem linear. Você pode assim, ler de ordem sequencial, seguindo a intercalações propostas pela autora, ou pode seguir o índice de personagens por cada capítulo. Outro fator interessante é que os relatos são feitos por presidiárias, ex presidiárias, mães de presas e mulheres que trabalham ou convivem diariamente com as detentas. Essa pluralidade de histórias presente na narrativa traz uma visão ampla sobre o assunto.


Assuntos abordados no livro


Foto: EBC

Nana Queiroz aborda em todo o livro, questões sociais que muitas vezes não são percebidas pela sociedade. A autora chama atenção para a precariedade a que as prisioneiras estão sujeitas e descreve com minuciosidade a aparência do local onde essas mulheres passam seus dias. Problemas como falta de acessos a serviços de saúde, agressões, más condições de higiene, torturas, falta de apoio às gestantes e distribuição de medicamentos sem prescrição médica para conter as detentas, são assuntos abordados em todo o livro.


Se em séries da Netflix como Orange is the New Black e Vis a Vis, as celas são limpinhas e organizadas com itens que as próprias detentas usam para decorar, a realidade das cárceres brasileiras é muito diferente. Escuras, encardidas e superlotadas. Itens como xampu, condicionador, sabonete e papel são moeda de troca das mais valiosas e servem de salário para as detentas mais pobres, que trabalham para outras presas como faxineiras ou cabeleireiras.


A falta de apoio às gestantes é uma das denúncias feita pela autora. Poucas mães presidiárias recebem os cuidados necessários durante a gestação. A história de uma das detentas expressa essa realidade. Quando foi presa pela última vez, Gardênia estava com uma gravidez avançada. Mesmo tendo conseguido dar à luz em um hospital, ficou algemada na cama durante boa parte do trabalho de parto. Quando sua filha nasceu, não pôde nem pegar o bebê no colo. “A vida da presa é assim: não pode nem olhar se nasceu com todos os dedos das mãos e dos pés.”


Outro assunto também explorado é o relacionamento que as detentas possuem com seus filhos seja durante a detenção e/ou após comprirem os anos de pena. Um dos relatos do livro vem da personagem Safira que passou quase sete anos presa e três anos ininterruptos sem ver seus filhos uma única vez. Quando saiu, sentia que não os conhecia mais, havia perdido muitos momentos importantes da vida de seus filhos. “Eu não conheço meus filhos. Eu sou assim: eles sabem que eu sou a mãe deles, mas praticamente sou uma desconhecida. Além de eu ter que me adaptar às coisas que eu perdi todo esse período que estive presa, eu tenho que aprender a conhecer os MEUS filhos”


Nas cárceres, existe competição e desejo de obter favoritismo assim como nas séries já citadas anteriormente. Cada presídio tem suas regras, às vezes impostas pelos guardas e outras pelas detentas mais populares. Safira era forte, mas na cadeia precisou se transformar em uma mulher que obedece e não questiona as normas. “As guardas têm as regras delas, e nós, as nossas”, explica. “Tem um monte de coisas que não podemos fazer, e chamamos isso de disciplina. E quem sai dessa disciplina é cobrada. Por isso existem as facções. Elas sempre têm alguém que vai nos dizer o que devemos fazer. E o crime mais grave de todos é matar criança. Quem faz isso tem que ficar isolada ou vai sofrer.”


Uma outra regra importante é não mexer com as detentas convertidas. Assim como vimos com Josiane na novela Dona do Pedaço, as evangélicas são protegidas nas celas pelo temor geral a Deus. Na novela que estreou no ano de 2019 na Rede Globo, Josiane foi presa e na cadeia se converteu. Antes da conversão, era perseguida pelas colegas de cela mas após se declarar como evangélica, todas as outras detentas passaram a respeitá-la por ser uma devota da palavra de Deus.


Além da religião, uma outra forma de obter proteção nas cadeias é o amor. Essa proteção fica clara através da história de Marcela, uma detenta de classe média que se envolveu em um sequestro. Sua boa condição financeira era símbolo de inveja para as outras presas. De noite, ela não conseguia dormir por medo, mas encontrou conforto e segurança nos braços de outra detenta, a Iara. A relação acabou evoluindo de amizade para afeto e Marcela que só havia se relacionado com homens, apaixonou-se por Iara.


Vera, detenta que também conta sua história para Nana Queiroz, é homossexual assumida desde antes dos crimes. E diz que muitas presas não são, mas “estão” lésbicas. “Mas as que curtem mulher mesmo, como eu, são poucas. Tem as que optam por isso porque se apaixonam, para tirar uma onda, por curiosidade. E umas que ficam porque se sentem ameaçadas. Se você é bonita, você incomoda. Se é muito feia, incomoda também. Rola muita inveja.” E a verdade é que nenhuma companheira de cadeia deixa sua mulher entrar em briga sozinha.


Por que ler esse livro?


Foto: Reprodução

A realidade das presidiárias têm se tornado cada vez mais um assunto abordado em séries, novelas e em reportagens. Em março, foi ao ar um matéria do Fantástico que contava sobre a realidade de mulheres trans no sistema carcerário brasileiro. O assunto foi alvo de comentários nas redes sociais, hora positivo e outra negativo. Mas a verdade é que todos ainda se chocam ao conhecer as histórias dessas detentas. Mulheres cis, trans, pobres, ricas, heterossexuais, homossexuais e bissexuais. Mulheres com um punhado de histórias e realidades diferentes das quais conhecemos.


Presos que menstruam é um livro que expõe de forma sensível essas histórias. As protagonistas do livro são as mulheres e os caminhos que as levaram à uma vida sem liberdade. A principal função do livro de Nana Queiroz é alertar sobre a crise carcerária feminina, que ainda quando divulgada nas mídias não nos permite entender a real dimensão desse assunto. Porque para as presas, a realidade é muito mais cruel. É preciso ler este livro para compreender que não se deve tratar da mesma forma presos e presas, pois “É fácil esquecer que mulheres são mulheres sob a desculpa de que todos os criminosos devem ser tratados de maneira idêntica. Mas a igualdade é desigual quando se esquecem as diferenças. É pelas gestantes, os bebês nascidos no chão das cadeias e as lésbicas que não podem receber visitas de suas esposas e filhos, que temos que lembrar que alguns desses presos, sim, menstruam.”


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