top of page

Crítica: o livro "Ela Disse" detalha os bastidores da denúncia de Harvey Weinstein

Você provavelmente ficou sabendo do movimento #MeToo, que estourou, principalmente nos Estados Unidos, em 2016. Também aposto que conhece, mesmo por alto, o produtor Harvey Weinstein - dono de empresas em Hollywood e acusado de assédio sexual por mais de 80 mulheres. Sim, você leu certo: mais de oitenta.


Desde o ano que sua história explodiu, os jornais caíram em cima de Weinstein - que foi condenado, em março deste ano, a 23 anos de prisão. Por todos os lados se lia sobre seus hábitos sexuais repulsivos, bem padronizados ao longo dos anos. Convites para sua suíte para reuniões “profissionais”, pedidos de massagens, aparições inesperadas vestindo apenas sua toalha… Esses são alguns dos constrangimentos que dezenas de mulheres passaram com o produtor.


O que aconteceu para escancarar os mais de 30 anos de abusos e estupros cometidos pelo produtor em Hollywood? Bom, resumidamente: Megan Twohey e Jodi Kantor aconteceram. As jornalistas do New York Times, ganhadoras do prêmio Pulitzer, foram responsáveis por escrever uma longa matéria, denunciando, enfim, Weinstein.


As jornalistas do NYT, Megan Twohey e Jodi Kantor | Foto: Divulgação

Mas, como qualquer um pode imaginar, não é fácil encontrar as vítimas de crimes tão bem escondidos. E, mesmo após encontrá-las, a missão mais difícil talvez seja convencê-las a se exporem para o mundo todo em uma reportagem, contrariando um dos homens mais poderosos de Hollywood.


É sobre isso que o livro “Ela Disse: Os bastidores da reportagem que impulsionou o #MeToo” trata. Escrito pelas duas jornalistas, a obra foi lançada no final do ano passado no Brasil pela Companhia das Letras. É um texto denso, pesado, mas muito interessante que, definitivamente, merece ser lido.



Bastidores da reportagem


O mais interessante de “Ela Disse” é a mudança de foco sobre a situação. Como disse, nos últimos anos a imprensa foi recheada de histórias nojentas sobre Harvey. O produtor foi associado a dezenas de crimes sexuais e teve sua imagem manchada para sempre.


Mas isso já entendemos. O que o livro faz, portanto, é humanizar esses 80 relatos de abuso. É colocar rosto nas vítimas e explicar, detalhadamente, o longo e trabalhoso processo que foi escrever essa reportagem histórica.


Capa do livro "Ela Disse" | Companhia das Letras, 2019

Durante a obra, vamos compreendendo um pouco melhor a abordagem que as jornalistas tiveram ao falarem com as vítimas. Desde ligarem para assistentes até aparecer - sem serem convidadas - na porta da casa de alguém… Kantor e Twohey tentaram de tudo. É bem curioso, inclusive, ver as profissionais atrás da história de qualquer maneira, mas tentando manter o respeito com as vítimas, uma vez que esse é um território tão difícil de desbravar.


A reportagem final contou, inclusive, com a participação de grandes estrelas como Gwyneth Paltrow. A atriz, em específico, tem um papel muito interessante no desenrolar de toda a história, já que além de servir como fonte, auxiliou contactando diversas vítimas - como o livro mostra.


Paltrow se tornou a queridinha de Weinstein na década de 90, quando a jovem tinha cerca de 22 anos. Após conseguir o papel principal em um filme do produtor, Shakespeare Apaixonado, o homem fez uma investida nada sutil na jovem atriz. Paltrow lembra que ficou muito desconfortável e negou os pedidos do diretor por uma massagem. Mais tarde, contou ao seu namorado da época, o também ator Brad Pitt - que confirmou a história ao ser contactado pelas jornalistas.


Gwyneth Paltrow, Harvey Weinstein & Cameron Diaz (Golden Globe, 1999) | Foto: J. Berliner (Shutterstock)

Paltrow não o denunciou, continuou indo às reuniões e se tornou uma profissional chave em diversas produções da Weinstein Company. O silêncio da atriz veio do medo. Medo de ser desacreditada e ter sua carreira arruinada. Logo, as jornalistas repararam nesse terrível impasse que as vítimas de assédio sexual em Hollywood - e em todo o mundo - se encontravam. Porém, o que perceberam também foi a mordaça que se colocava nas mulheres, inclusive naquelas que conseguiam denunciar.



Anos de mordaças


Megan e Jodi fizeram mais do que desmascarar os comportamentos predatórios, não só de Weinstein, mas de vários homens em Hollywood. O que as jornalistas fizeram de mais grandioso, na verdade, foi expor um padrão antigo do universo de entretenimento.


A regra do jogo era clara: o assédio ou estupro acontecia e a partir daí existiam duas opções: ou a mulher se sentia coagida de falar sobre o caso e acusar uma figura tão poderosa do entretenimento, principalmente pelos possíveis impactos em sua carreira (o que ocorre na maioria das vezes) ou ela conseguia reunir coragem e mecanismos para realizar a denúncia.


Porém, até nesse segundo caso, como é possível de imaginar, não era tão fácil para a vítima. Quem denunciava acabava em uma espiral jurídica complexa e, mesmo quando se provava a violência, na maioria das vezes era a voz dele contra a dela. E ele sendo um dos maiores produtores da história de Hollywood, sua voz tendia a ser ainda mais alta. Portanto, para evitar constrangimentos e problemas maiores, as partes costumavam assinar um contrato, no qual o abusador, Weinstein, paga uma indenização a vítima.


Justo? De certa forma, pode ser que sim. O problema é que, como as jornalistas descobriram, as indenizações vinham sempre acompanhadas de um contrato de confidencialidade - no qual a mulher não poderia falar sobre o abuso vivido para absolutamente ninguém, por anos. E foi aí que surgiu a maior dificuldade das jornalistas, que o livro desdobra tão bem: como burlar esse contrato?


Mas, ainda em um universo mais amplo, Megan e Jodi conseguem analisar a postura incoerente de advogadas - inclusive profissionais famosas em defender vítimas de violência, como Lisa Bloom - e repensar mecanismos tão intrínsecos ao meio que por muitos anos foram passados despercebidos.


O livro, narrado em primeira pessoa - como uma espécie de "nós", que engloba a vivência de ambas as jornalistas - é de impressionar. Detalhes tão específicos, que eu provavelmente nunca iria imaginar. "Ela Disse" é interessante e, apesar do escândalo ser algo datado, não deixa de ser extremamente atual. Diria que é uma leitura obrigatória para jornalistas, mas que pode acrescentar muito na vida de qualquer um.


Se eu fosse você, aproveitava a quarentena para iniciar esse livro - disponível tanto em versão física quanto ebook pelo site da editora.


____



Quer saber nossas impressões sobre diversas obras das mulheres na cultura? Cinema, música, literatura, teatro e muito mais. Tudo isso, duas vezes por semana, na categoria 'Crítica'.


bottom of page