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Crítica: "Eu Me Importo" tem roteiro fraco, mas elenco forte compensa

Eu Me Importo (dirigido por J Blakeson, também responsável por A Quinta Onda) conta a história da golpista Marla Grayson (Rosamund Pike), que engana idosos para assumir sua curatela e trancá-los em asilos. Com eles fora de cena, Marla rouba seus pertences e finanças para enriquecer — tudo isso enquanto é apoiada pela lei, que encara idosos como incapazes de responder por si mesmos.


O problema é quando Marla engana uma senhora nem um pouco inofensiva, e passa a ser perseguida pela máfia. Confira a seguir nossa resenha de Eu Me Importo. O filme está disponível para assistir online na Netflix, e rendeu o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Cinema de Comédia ou Musical a Rosamund Pike.

O filme começa sem escrúpulos, mostrando logo de cara como funciona o esquema de Marla, então o título chama atenção: eu me importo? Até parece, Marla não se importa. Mas vale apontar que, apesar da ironia brasileira, o título original é mais inteligente: I Care A Lot (eu me importo muito, em português). O trocadilho aqui é que care pode ser tanto importar quanto cuidar, referindo-se ao suposto trabalho de Marla de cuidar dos idosos. Agora eu vou passar um pano para nossos colonizadores, porque Eu Me Importo lá em Portugal virou Tudo Pelo Vosso Bem. Fora o claro deboche — porque essa bem que é uma frase que Marla contaria aos idosos para ganhar sua confiança —, o título traz a ambiguidade do “vosso” porque, à medida que assistimos a I Care A Lot, fica evidente que Marla faria tudo pelo seu próprio bem.


Rosamund Pike carrega o filme nas costas ao interpretar tal personagem impiedosa e determinada, então não é surpresa que ela tenha ganhado o Globo de Ouro por sua atuação perfeita. Ao mesmo tempo, há o risco de acharem sua atuação “repetitiva”: minha mãe, ao ver que eu estava assistindo a Eu Me Importo, comentou “Nem terminei esse filme, é a menina de Garota Exemplar sendo megera outra vez”. A comparação é inevitável; eu pensei isso logo que li a sinopse, e conferi que muitas críticas na Internet também apontaram isso.


Rosamund é perfeita como vilã, sim, e é uma pena que o roteiro não a acompanha. De primeira, eu achei a mudança de tom do filme engraçada — bom, ele é listado como thriller e comédia na Netflix — ao intercalar cenas de uma Marla gentil com idosos com seus planos para extorqui-los sem dó nem piedade. Só que quando Eu Me Importo finalmente deslancha, com o aparecimento do rival de Marla (interpretado por Peter Dinklage), fica claro que o filme é uma grande bagunça. São muitos deuses ex-machina para resolver situações impossíveis com o objetivo único de surpreender o telespectador e, honestamente? Depois do terceiro plot twist eu fiquei cansada.

Serei justa e não vou fechar os olhos para os acertos do filme, claro. A trilha sonora e a ambientação instrumental foram impecáveis, transmitindo a emoção necessária sem roubar o brilho do visual. A cena em que a senhora Jennifer Peterson (Dianne Wiest) é enganada por Marla e levada à força até a casa de repouso é simplesmente sufocante. Além da atuação de qualidade de Dianne, os sons da trilha deixam a gente na beira do assento porque tudo soa tão indistinto e perturbador.


Um grande ponto do roteiro é que Marla nunca é mostrada por uma ótica favorável; Eu Me Importo não tem vergonha de esfregar na nossa cara que ela é uma criminosa cruel, e sua posição de protagonista não a torna uma “heroína”. A grande questão que move o filme é descobrir, no final das contas, se ela realmente conseguirá sair impune dos seus atos ou perderá para o outro golpista, que é tão errado quanto ela.


O relacionamento de Marla com Fran (Eiza González) traz uma humanidade bem-vinda a ela, mas não anula suas ações ilegais. O estabelecimento de uma vilã mulher tem tudo para cair no clichê irritante “bad girl”, mas Marla não é sexualizada em nenhum momento (e olha que tem umas cenas desconexas dela malhando) e podemos ver com facilidade que ela chegou aonde chegou graças a seu raciocínio e intelecto.

Também vale uma menção à clara tentativa do roteiro de inclusão. Além do casal lésbico (que não é usado como plot device, amém), mulheres ocupam diversos papéis que, tradicionalmente, são de homens. A rede de esquemas burocráticos que apoia Marla é formada apenas por mulheres, que aparecem como detetives, médicas, penhoras etc. Eu só revirei um pouco os olhos na cena em que Marla corrige o advogado que se refere à médica como ele (já que doctor, no inglês, é comum de dois gêneros) porque aquilo pareceu muito auto panfletagem de representatividade.


Apesar disso, a inclusão do filme não é plena e ainda falta um longo caminho para conquistá-la. Ver mais mulheres foi ótimo, mas o elenco continua sendo branco demais. A única exceção é Fran, interpretada por uma mulher latina (que, aqui no Brasil, seria uma branca qualquer). A presença de Peter Dinklage num papel que não menciona sua baixa estatura a cada cinco minutos para alívio cômico também é agradável. Mesmo assim, não matava ninguém ter escalado mais alguns artistas de cor, né?

Como termina o filme Eu Me Importo?


[Pois é, chegamos nos spoilers! Pule este tópico se você ainda não assistiu a Eu Me Importo na Netflix.]


O final de Eu Me Importo simplesmente me quebrou — e isso não é um elogio. Vamos ser diretos e chegar aos finalmentes: Marla aceita a proposta de Roman de expandirem os negócios de curatela. Marla se torna uma fodona/coach que dá palestras e entrevistas sobre cuidar de velhinhos. Na última cena do filme, Marla morre nos braços de Fran após levar um tiro de um homem cuja mãe, vítima dos seus golpes, morreu num asilo. É isso.


Eu faço a mínima ideia qual foi a intenção com essa cena final. Será que foi para o roteirista meter o dedo na nossa cara e falar “arrá, vocês estavam torcendo para a vilã”? Será que foi apenas para surpreender a gente uma última vez (como se a Marla ter sobrevivido a um fucking afogamento trancada num carro não fosse surpreendente o suficiente)? Será que foi para, enfim, empregar a punição pendente das ações de Marla?

Tanto faz essa resposta para mim, porque eu estou simplesmente decepcionada. Minha decepção começou antes mesmo do desfecho, com o monólogo final da Marla sobre ser uma predadora, saber falar com pessoas e blábláblá — aquele monólogo é fraco demais. Antes de escrever um monólogo, pergunte-se: Meryl Streep o recitaria com o orgulho que fez no fim de A Lavanderia? Se a resposta é não, então nem tente.


Por mim, Eu Me Importo terminaria com a cena em que Marla e Roman dão as mãos e decidem virar sócios. Seria meio brusco? Sim, mas várias perguntas interessantes martelariam na minha cabeça: será que eles foram bem-sucedidos? Será que aprenderam a confiar um no outro? Essas dúvidas são curiosas porque o desenrolar inteiro do filme se baseia no fato que Marla e Roman são péssimas pessoas que pensam só em dinheiro. E, agora, devem contar um com o outro devido ao seu objetivo maior em vida: dinheiro.

Em vez disso, nããão, o cara ruim tem que ser punido porque isso foi errado e ZZZ… Que sono, que preguiça desse final. Eu Me Importo já tinha feito um bom trabalho em mostrar que Marla é uma pessoa cruel; a penitência foi completamente desnecessária. Parece que o filme quis estender ainda mais sua lição de moral, sendo que não precisava. E deixo aqui uma reflexão: Marla leva um tiro enquanto o mafioso russo Roman continua muito bem e vivo, obrigada. Por que só ela recebe a sentença?


Não estou aqui para criar uma teoria da conspiração de perseguição machista a mulheres (até porque isso não é uma teoria, é a realidade), mas há um grande deficit de personagens anti-heroínas para nós. De vilãs que fogem do olhar masculino e não são um mero pretexto para sexualização. Aí, quando finalmente temos uma, ela é castigada? A carreira do Jason Statham (obrigada pela referência, Jessica) é toda calcada em personagens com um compasso moral questionável e, não, ele nunca morre no final dos filmes. E parece que ninguém sente falta da penitência dos personagens do Jason. Então por que o mesmo não acontece em Eu Me Importo? Por que a maldade parece mais ofensiva quando retratada em mulheres? Ou será que são os homens que são sempre impunes?


Veredito: eu (não) me importo

Eu não reassistiria a Eu Me Importo. Verdade seja dita, eu acho que nem a isso que o filme se propõe. As impressões mais marcantes que o longa deixa são a atuação da Rosamund Pike (obrigada, Globo de Ouro) e o esquema de golpes de Marla. Eu Me Importo quer apontar o dedo na cara das pessoas e questionar o grande sonho americano, e essa crítica pode ser perder um pouco para nós, brasileiras.


Entretanto, é impossível não se revoltar com o sistema que maltrata e rouba idosos. Quero dizer, todo mundo tem algum parente de idade que não pode ir ao banco sozinho, senão arranja mil empréstimos e títulos de capitalização por influência do bancário, né? (Bancárias, favor não se ofenderem, mas eu já vi isso acontecer vezes demais. Se você não aplica golpes, parabéns por fazer o mínimo.) Então essa extorsão da terceira idade é assustadoramente próxima da nossa realidade, apesar de serem países tão diferentes.


A revolta é um sentimento bom para deixar desse filme, porque indica que ele serviu pelo menos para chamar nossa atenção para uma questão séria. De resto, valeu meu tempo ver a Rosamund toda badass, mas é isso. Ponto final. Qualquer pessoa que valorizar Eu Me Importo mais do que isso é uma emocionada e deve reconhecer que a atração pelo longa não é estimulada por qualidade, e sim por puro favoritismo.





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