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Crítica: "Rosa e Momo" traz delicadeza e sutileza a temas complexos

Se você busca um drama indicado ao Oscar 2021 para assistir na Netflix, "Rosa e Momo" é o filme ideal. Lançado mundialmente em novembro de 2020, "La vita davanti a sé", em italiano, é aquele drama na medida certa, que sabe tratar de questões complexas de maneira delicada e sutil. Baseado em romance de Romain Gary, fala de traumas sem provocar gatilhos.


A sinopse traz o encontro de dois mundos, que podem parecer muitos diferentes, mas possuem diversas semelhanças. Mouhamed (Ibrahima Gueye) é um adolescente órfão de 12 anos. Vindo do Senegal, Momo, como prefere ser chamado, tem pouca ou quase nenhuma perspectiva de vida, além de conhecer pouco de si próprio, da sua mãe falecida e de sua religião muçulmana. Sob a tutela de Dr. Cohen em Nápoles, no sul da Itália, é bastante rebelde, pratica pequenos delitos se envolve com o tráfico de drogas e tenta ser respeitado nesse submundo do crime.


Inesperadamente, seu caminho cruza com o de Madame Rosa (Sophia Loren), uma ex-prostituta judia que é sobrevivente do Holocausto e vive atualmente cuidando dos filhos de outras prostitutas em Nápoles, no sul da Itália. À pedido de Dr. Cohen, que lhe paga uma certa quantia mensal, ela passa a cuidar do menino problemático. O que ela não esperava é que desse encontro conturbado, nasceria uma bela relação de cumplicidade e confiança.



Sem verbalizar ou criar cenas de choros megalomaníacos, traz à tona questões complexas. Um exemplo é a marcação na pele de ambos: em Rosa, o código de identificação tatuado pelos nazistas; em Momo, as pequenas cicatrizes de uma infância difícil. As marcas nos dois personagem explicam sem precisar de uma palavra dita.


A leveza dos assuntos também fica evidente pelo filme ser contado a partir do olhar daquele adolescente que acabou de sair da infância. É Momo que narra as histórias sob a sua ótica. Com 12 anos e pouco acesso a informação, não seria coerente vê-lo falando de nazismo, imigração, direitos da criança e do adolescente e aliciamento de menores a partir de um tom crítico.


Sophia Loren e elenco brilhante


De cara, o filme já chama atenção por trazer de volta às telas, aos 86 anos de idade, a atriz Sophia Loren. Ícone do cinema italiano, ela estava há cerca de dez anos longe de grandes produções. Ao dar vida a Madame Rosa, ela mostra que não há prazo de validade para a mulher na cultura e no entretenimento.


Ela ainda demonstra muita generosidade ao dividir os holofotes e, às vezes, até assumir um papel de coadjuvante de luxo para o jovem Ibrahima Gueye. Atriz ignora clichês que outras atuações poderiam trazer a personagens que estão a margem da sociedade como as prostitutas. Não é caricata, é certeira e humana.


As cenas de devaneio e silêncios de Rosa, que sinalizam o avanço do Alzheimer, são emocionantes. Fica estampado no rosto da personagem os traumas do passado provocados pelos agentes de Hitler em concentrações nazistas. Interpretando uma sobrevivente, ela traz drama e intensidade na medida certa.


Momo também tem alucinações, mostrando que os dois personagens de gerações opostas possuem mais semelhanças do que podemos imaginar. Porém, as dele são mais lúdicas e puras. Ele recebe a visita de uma onça imaginária e protetora. Outras cenas que trazem pureza são as de Momo andando de bicicleta. A alegria estampada em seu rosto nesses momentos deveriam ser vistas sempre nos rostos de qualquer criança pelo mundo.


O jovem ator Ibrahima Gueye assume o protagonismo - e muito bem, por sinal - quando narra a história sob a ótica do jovem Momo, o que é um ponto muito acertado da direção do longa. Parece que possui anos e anos de muita experiência. A revolta e a fragilidade são marcas que o ator conseguiu deixar no personagem.


Outra pessoa que se destaca também é a atriz espanhola Abril Zamora. Com local de fala, traz representatividade a pauta trans, que é tratada com muita naturalidade no roteiro - como deveria ser sempre.




Indicação ao Oscar


Laura Pausini produziu a canção "Io Sí" especialmente para o filme, a partir da letra e melodia composta por Diane Warren. O que ela não esperava é que fosse indicada ao Oscar de Melhor Canção Original por isso. A cantora, que já levou Globo de Ouro pela composição, revelou que se sentiu culpada de receber essa notícia feliz em tempos tão tristes para a humanidade.


Mas a indicação é totalmente justa. A canção, que ganhou versões em português, francês e espanhol na voz de Laura, finaliza com chave de ouro a relação entre o menino Momo e a senhora Rosa. A cumplicidade dos dois fica evidente em versos como:


Eu não sei

Qual destino é o seu

Mas se quiser, se me quiser

Estou aqui

Ninguém te vê

Mas eu, sim

Eu, sim


"Io Sí" ainda ganha mais relevância por conseguir uma indicação sendo em italiano, o que é raro. Ou seja, é para colocar na playlist e escutar cantando forte porque é a cereja do bolo do filme que tem o brilhantismo de Sophia Loren, o jovem talento de Ibrahima Gueye e a delicadeza do roteiro e direção de Edoardo Ponti. Ugo Chiti também assina o script.


E já que estamos falando de música, outra grata surpresa da trilha sonora é a canção "Malandro", na voz de Elza Soares. Serve de embalo para o baile improvisado de Lola e Rosa.



Contrastes que aproximam


"Rosa e Momo" ou "La vita davanti a sé", em italiano, é um filme que entende a possibilidade de se fazer um drama sem clichê e propor, de forma leve, reflexões sobre traumas. Merece os aplausos ainda por revelar contrastes presentes na sociedade, de maneira poética, por meio da relação de lealdade entre dois personagens de gerações diferentes.


Traz a visão de que seres contrastantes podem ser mais parecidos do que imaginamos. A ligação entre Momo e Rosa é quase interior. Ele, um menino preto e órfão de proteção; ela, uma senhora branca e sobrevivente de uma barbárie; mas ambos, cheios de traumas e vivências complicadas.


O longa ainda apresenta diálogos interessantes que não soam como forçados, principalmente os ensinamentos que saem da boca de Madame Rosa. A frase "é quando se perde as esperanças que coisas boas acontecem" seguida do toque de mão entre os dois é quase um abraço no espectador, que independente do lugar do mundo - uns com mais e outros com menos intensidade - vive períodos conturbados.


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