Crítica: A dor da perda escancarada em “Pieces of a Woman”
Eu fiquei uns bons minutos encarando a tela do computador pensando em como começar essa crítica. Por vários motivos, acho que o sentimento que mais predominou em mim depois de ter assistido Pieces of a Woman (2020) foi o de incerteza. O original Netflix é um chamado para refletir sobre uma situação que é evitada a todo custo: a perda de um filho.
É óbvio que nós vemos isso escancarado nos jornais todos os dias – principalmente enquanto vivemos no meio de uma pandemia sem o menor auxílio dos nossos governantes. Mas, quantas vezes realmente pensamos em quem é impactado por cada uma daquelas mortes. O quão próximo precisamos estar para isso?
No longa, estamos vivenciando esse momento junto com a família que sofreu a perda e, principalmente, a mãe da pequena Yvette que, depois de um parto complicado, acaba sobrevivendo apenas por alguns minutos após o seu nascimento. A partir desse momento, somos convidados a ver os pedaços espalhados de uma mãe que só teve alguns momentos com a filha.
Martha (Vanessa Kirby) precisa passar pelo luto, pela ruína do seu casamento com Sean (Shia LaBeouf) e por cima das vontades da matriarca da família para conseguir buscar um pouco de paz após um momento traumatizante. E esse é o enredo do filme.
Com direção de Kornél Mundruczó e roteiro de Kata Weber, “Pieces of a Woman” não impressiona por ser uma obra de arte. Esteticamente o filme é bem simples, por assim dizer. O que ganha destaque durante todo o filme é entender as nuances que o roteiro proporciona e, principalmente, a atuação de Vanessa Kirby – que faturou a única indicação ao Oscar do filme na categoria de Melhor Atriz.
Obs: A partir daqui o texto vai ter alguns spoilers sobre o filme. Indicamos a leitura apenas para quem já assistiu ou para quem não se importa com isso :)
A cena inicial do filme
Antes mesmo de finalizar todos os créditos iniciais acontece a cena que vai guiar todos os acontecimentos do filme. Somos apresentados aos personagens principais e começamos a acompanhar os últimos preparativos para a chegada da bebê. Martha recebe uma festa de despedida no trabalho, Sean sai alguns dias de folga e Elizabeth (mãe de Martha) compra uma minivan para os futuros pais.
O avançar no filme nos leva para a noite em que Martha começa a sentir contrações e é nesse momento que descobrimos que o casal havia decidido por um parto em casa. Eu já sabia o enredo do filme, então já esperava também o que viria a seguir. Porém, mesmo sabendo, somos guiados a acreditar que não será verdade, que o parto será um sucesso e que a sinopse do filme era uma mentira.
Infelizmente não é isso que acontece e depois de momentos de grande tensão, complicações identificadas pela parteira substituta do casal Eva (Molly Parker) o pior acontece. Yvette nasce com dificuldades para respirar e acaba sobrevivendo apenas por alguns segundos. Esse é o prefácio da história. O que dá início a sequência da vida do casal. E é extremamente chocante. Acho que faltam palavras para descrever a potência dessa cena e tudo o que ela irá representar para a história. Eu só consegui pensar que a vida realmente é uma grande incerteza e que, só por estarmos nesse mundo, somos jogados nesse caldeirão de dúvidas.
A incrível atuação de Vanessa Kirby
E, no meio de toda essa trama extremamente dramática, existe algo que realmente se destaca durante todo o filme: a atuação de Vanessa Kirby. A atriz já esteve em grandes produções e interpretou, inclusive, a Princesa Margaret nas primeiras temporadas de The Crown – esse papel lhe rendeu o BAFTA de Melhor Atriz Coadjuvante em Televisão.
Já era de se esperar uma grande atuação de Kirby, mas as nuances que ela desenvolveu em sua personagem e a forma como ela passou a dor de Martha em cada olhar, fala, decisão é surreal. O longa, que fala exatamente sobre esse processo, ganha mais e mais profundidade com a interpretação dela. É como se, de fato, víssemos todos os seus pedaços espalhados enquanto ela luta bravamente para voltar para a sua “vida normal”.
Voltar ao trabalho dias após a perda da sua filha, escolher doar o corpo para estudo em uma universidade e seu novo gosto por maçãs começam a fazer parte da vida de Martha. Tudo isso enquanto ela ainda precisa lidar com as mudanças que a gravidez proporcionou no seu corpo irem embora rapidamente e, pior ainda, com as mudanças que a morte da sua filha trouxe em todos que estavam ao seu redor.
Enquanto a personagem busca na sua rotina o conforto pelo o que aconteceu, a maior parte dos seus familiares e amigos buscam na condenação de Eva por negligência no parto uma forma de superar o ocorrido. Por esse motivo, além de todo o sofrimento iniciado nos primeiros minutos da trama, vemos Martha ter que lidar com todas as questões que vão surgindo em decorrência da morte da pequena Yvette.
Em todos os momentos, Kirby atua de forma tão verossimilhante à situação que fica quase impossível pensar que o que estamos vendo é um filme e não um documentário. Infelizmente, não vemos tanto destaque assim nas demais atuações e, por isso, apenas Kirby recebeu elogios e a indicação à premiação.
O que esperar dele no Oscar?
Eu já começo dizendo que Vanessa Kirby se tornou a minha favorita na categoria de Melhor Atriz. É quase impossível desejar que outra atriz leve o prêmio para casa depois de ver uma interpretação tão real e poderosa. Creio que todos que integraram a equipe de preparação tem lugar muito importante nessa indicação. A própria atriz agradeceu grande parte da equipe assim que recebeu a indicação e, principalmente, agradeceu as mães que passaram pela mesma situação e prestaram consultoria para o desenvolvimento da personagem.
Essa é uma dor única e eu nem consigo mensurar como deve ser passar por isso. Acho que essa é a grande mensagem no filme, mostrar como existem processos de “recuperação” distintos e a importância de ter uma rede de apoio. Deixo aqui a mensagem que Kirby deixou em sua postagem: você não está sozinha. Essa é, infelizmente, uma situação que foge ao nosso controle e buscar ajuda é essencial para encontrar força para passar por esse momento.
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