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Crítica: O fim de 3%, a primeira série original Netflix do Brasil

Chegar ao final de uma série sempre traz aquela sensação agridoce. Mesmo com toda a ansiedade de saber como aquela história vai terminar, a gente nunca quer que acabe de fato. E é essa sensação que a gente teve com a quarta e última temporada de “3%”: uma série distópica com criação de Pedro Aguilera. A série 3% foi a primeira original da Netflix feita no Brasil que, na última sexta-feira (14), trouxe a despedida do Maralto, do Continente e do Processo.


A primeira temporada de “3%” estreou em 2016, contando a história de um futuro distópico. O mundo é dividido em dois lados: o Continente, onde os moradores vivem em extrema pobreza; e o Maralto, um paraíso construído há dezenas de anos onde só quem é merecedor vive lá. Para sair do Continente e ir para o Maralto, os jovens de 20 anos passam pelo Processo e apenas 3% da população é aprovada e muda completamente de vida. E é por esse motivo que o nome da série é “3%”.


Uma das fases do Processo na 1° temporada, causava alucinações nos candidatos. | Foto: Reprodução.

Atenção: Se você ainda não assistiu à série, prossiga com cautela. A partir daqui pode conter spoilers!


Após a criação da Concha na segunda temporada, um lugar onde todos são bem-vindos e que essa história de “ser merecedor” não existe, os moradores do Continente encontraram uma opção sem o Processo para uma vida mais confortável. A popularidade do Maralto foi caindo e dividindo a população agora em três partes: Maralto, Continente e Concha. E, como bem conhecemos os personagens, podemos perceber que isso não foi algo que agradou muito. A terceira temporada termina então, com a tentativa de Marcela (Laila Garin) de tomar a Concha e reverter essa situação. Tentativa essa que não dá certo e faz dela uma prisioneira.


Nos primeiros segundos da nova e quarta temporada percebemos que uma “missão diplomática” está em andamento. Os moradores do Maralto querem Marcela de volta, e os moradores da Concha enxergam ali uma oportunidade de acabar de vez com o Processo. E é em torno disso que a última temporada se desenrola, deixando com uma pergunta: será que eles conseguirão dar fim a um dos maiores ideais do Casal Fundador e encerrar as desigualdades causadas pelo Processo?


Os moradores da Concha iniciam uma nova missão no Maralto. | Foto: Reprodução

Podemos dizer que a quarta temporada, assim como as outras, está recheada de flashbacks. Eles nos ajudam a relembrar acontecimentos das temporadas anteriores e, ainda, entender um pouco mais sobre as personalidades dos nossos personagens. Com Joana (Vaneza Oliveira) por exemplo, percebemos através de memórias de sua infância que há um desejo de saber sua origem, quem são seus pais e qual o seu nome verdadeiro.


Complexidade dos personagens


“Ninguém se deixa seduzir!” Esse é o lema de Marco (Rafael Lozano), Natália (Amanda Magalhães), Joana, Rafael (Rodolfo Valente) e Elisa (Thais Lago), ao chegarem no Maralto, deixando claro que nem o conforto e beleza vão tirar deles o foco no objetivo de destruir o lugar. Esses cinco personagens, juntos com Michele (Bianca Comparato) e Xavier (Fernando Rubro) acabam se tornando os grandes heróis da série. Mas não pense que eles são personagens bonzinhos que se encaixam no padrão que vemos por aí. Todos eles possuem altos e baixos desde a primeira temporada, são personagens reais que mostram ao longo da história personalidades complexas.


Na verdade, um dos pontos fortes da série são os personagens. Todos, tanto os que tiveram desde o ínicio como os que apareceram ao longo das temporadas, foram bem construídos para mostrar como a instituição Maralto e o Processo afetam o caráter das pessoas. Nessa última temporada, percebemos que o Maralto não afeta somente os jovens que sonham ou abominam a tal história dos 3% merecedores. Conhecemos melhor Marcela jovem (Greice Costa), que após passar no Processo descobre que nem toda a tecnologia e beleza do lugar são necessários para fornecer uma vida feliz. Essa frustração é gerada pelo pai, que se mostra um tanto quanto frio ao receber a filha no novo lar. Inclusive, o pai de Marcela, Leonardo, é interpretado brilhantemente por Ney Matogrosso na fase atual da série.


E já que a série carrega no nome uma porcentagem, preciso dizer que certamente 99% das pessoas que assistiram carregam dentro de si a sensação de amor e ódio pela maioria dos personagens da história. Eles são tão reais e cheios de particularidades que ao longo das quatro temporadas encontramos motivos para amar e odiar cada um deles e suas decisões.


Percebemos a complexidade desses personagens também através de Glória (Cynthia Senek), que, mesmo fazendo parte do grupo de pessoas contra o Maralto, toma atitudes pensando apenas em si mesma, prejudicando seus amigos e dando fim a Concha. Ela é um exemplo de um personagem que no decorrer da história vai aprendendo com os próprios erros e tomando atitudes diferentes a cada episódio. Essas complexidades são percebidas ao longo dos sete episódios da série e nos fazem questionar: se estivéssemos no lugar deles, o que faríamos?


Problemas do passado ainda afetam os personagens, como na relação de Michele e Glória. | Foto: Reprodução

Linhagem familiar


Se lá em 2016, quando estreou, as linhagens familiares estavam fortes na série, na quarta temporada elas se mantêm presentes. Mas isso não torna o enredo chato, muito pelo contrário, essas famílias nos ajudam a entender como a narrativa do Maralto influenciou muitas vidas do Continente. Aos 20 anos, os jovens saem de casa rumo ao prédio do Processo, deixando para trás seus pais e filhos. Quem passa é visto como vitorioso, e quem volta para casa não somente faz de si um perdedor, como toda a sua família. Percebemos que essas questões influenciam as decisões dos personagens até o final da série.


Começando por Marco, que, por ser um Alvarez, desde a primeira temporada carrega o fardo de precisar passar no processo, afinal, todos de sua família passam. Essa obrigatoriedade faz ele surgir como um grande vilão nas primeiras temporadas, mas, após tanto aprendizado no decorrer das cenas, se torna um dos heróis da distopia. Após o misto de sensações de amor e ódio na série pelo personagem, o ciclo de Marco se encerra de forma coerente. Ele termina sua jornada após uma grande e séria conversa com sua mãe Marcela e seu avô Leonardo no Maralto, aceitando que nada pode mudar quem é: um Alvarez.


Marco termina sua jornada reconhecendo quem é. | Foto: Reprodução

Se para Marco a obrigação era de passar no Processo, para Xavier era totalmente o contrário. Por ser um Toledo, todos já esperam que ele vá mal nas provas e que seja reprovado nas primeiras etapas da seleção. A tarefa de Xavier é ir bem no Processo para que a missão de acabar com o Maralto dê certo. Talvez fosse isso que faltasse nos Toledos que vieram antes deste personagem: motivação. Graças a Michele, ele aprende sobre as provas e quebra esse discurso de que um Toledo não é “merecedor”.


Michele aparece na quarta temporada como líder, mentora e muitas vezes, inspiração para os outros personagens. | Foto: Reprodução

Dentre todos os finais, o que mais me surpreendeu foi o de Michele. Depois de acompanharmos a personagem em todas as temporadas, o fim dela é o mesmo de Fernando (Michel Gomes). As mais variadas reviravoltas acontecem entre ela e seu irmão, mas Michele encerra sua jornada na série contando a todos os moradores do Continente que o Maralto não existe mais e tem seu fim pelas mãos de seu próprio irmão, André (Bruno Fagundes). E ele, após se mostrar desequilibrado, fanático pelo Casal Fundador e inconsequente, também encerra seu ciclo ao lado da irmã, só que dessa vez na imaginação.


3% é uma série política!


Se você assistiu a 3%, certamente notou a importância de uma personagem para o desenrolar da história e principalmente para o final da série. E, óbvio, estou falando de Joana. Sem dúvidas ter uma mulher preta e bissexual, encerrando a temporada em um relacionamento com a personagem Natália, faz todo o discurso da série ficar ainda mais forte. Joana em todas as temporadas se impõe, apresenta propostas e toma iniciativa sem precisar de autorização de ninguém e muito menos de um homem.


Joana aprende a lidar com suas fraquezas ao entrar no Maralto. | Foto: Reprodução

“O mundo era dividido em dois lados. Não é mais”. A série poderia ter parado por aí e deixado aos espectadores usarem a imaginação ao pensar como estaria cada personagem da trama após o fim do Maralto. No começo da quarta temporada, percebemos que o objetivo principal era acabar com o Processo e, se possível, com o Maralto. Teoricamente, o final da série seria atingindo esse clímax. Mas ela vai além do “final feliz”.


Mais uma vez o dedo é colocado na ferida e nos mostra que a realidade é bem diferente do que esperamos por estarmos acostumados a ver em produções audiovisuais. Após a conquista do objetivo principal, ainda há guerra, derramamento de sangue e fome por poder. E é nesse momento que Joana aparece, trazendo uma sugestão para resolver o problema: uma liderança colaborativa de todos e totalmente democrática. Novamente, Joana faz tudo!


3% é uma série política e isso, não dá pra negar. As críticas sociais são inúmeras e totalmente necessárias. Tudo isso munido a uma excelente fotografia que passeia nas mais variadas cores e jogos de luz e sombra, figurino impecável e uma trilha sonora de fazer qualquer um se apaixonar. O final inclusive, conta com a participação do cantor Chico César, ao som de “Velha Roupa Colorida”, canção de Belchior, famosa na voz de Elis Regina que não poderia encaixar melhor com o grand finale da série: “O passado é uma roupa que não nos serve mais!”


A série ficará para sempre na história do audiovisual brasileiro, como a primeira produção da Netflix feita no Brasil, o que é uma grande conquista para a série, e um privilégio muito grande para nosso país. Mas infelizmente muitos brasileiros, inclusive, entortam o nariz só de saber que é um produto nacional. Mas 3% veio para mostrar que, quando queremos, somos capazes de criar e apreciar algo tão grandioso e com um enredo rico feito no nosso país, afinal, já está na hora de começarmos a valorizar as produções e o que os profissionais brasileiros têm a oferecer né?


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