Crítica: A militância e o discurso self-made na história de Madam C.J. Walker
Se o que você precisa é de uma boa história de mulher inspiradora, então “A vida e a história de Madam C.J. Walker” é a série para você. Com Octavia Spencer (Estrelas Além do Tempo), a minissérie da Netflix é uma opção leve e rápida para passar o tempo, se inspirar para dar duro no próprio negócio e se manter firme no que acredita. Tem movimento negro, feminista, queer e um quê da típica cultura estadunidense de “self-made man” - ou woman. Confira a crítica *COM SPOILERS* a seguir.
Quem é Madam C.J. Walker?
Bem, a série conta a história real (com ficção) de Madam C.J. Walker, a primeira mulher milionária por conta própria nos Estados Unidos. Ela revolucionou o setor de beleza para mulheres negras e também se envolveu com o ativismo político em tempos de segregação racial. A produção da Netflix foi baseada no projeto de biografia “On Her Own Ground” de A'Lelia Bundles, trineta da empreendedora.
A minissérie de quatro episódios começa mostrando Sarah Breedlove, uma lavadeira filha de escravos libertos que sofre com a perda de cabelo - como muitas mulheres negras na época. Após um encontro com Annie Malone, conhecida por ter um produto que fazia os cabelos crescerem, Sarah recupera os fios, a confiança e a auto-estima. Ela se casa com C.J. Walker e, após ser dispensada como vendedora de Annie por “não ser o padrão de mulher negra desejado”, decide elaborar e vender o próprio produto para queda de cabelo.
E assim se desenvolve a trama de final conhecido. Vemos os esforços de Madam Walker para firmar seu produto e marca de “Wonderful Hair Grower”, a rivalidade e disputa por clientela com Annie Malone, os problemas no casamento, as desavenças com a filha e todo o racismo e machismo que Sarah teve de enfrentar. Com um toque de musical (mas nada que afaste quem não gosta desse estilo), a série trata de questões sérias sem ficar pesado.
Movimento negro
Um ponto importante - e impossível de não ser notado - é a forte presença do movimento negro. A começar pelo elenco 100% negro estrelado por Octavia Spencer (Histórias Cruzadas) e composto por Tiffany Haddish, Carmen Ejogo (Selma), Blair Underwood (Olhos que condenam), Garrett Morris (2 Broke Girls) e Kevin Carroll (The Leftovers). Um elenco de peso com excelentes atuações. A trilha sonora é também digna de destaque: com seleção de alto nível, é 100% feminina e negra.
Além disso, em todo o decorrer da série a bandeira do movimento negro é levantada à la “Cara Gente Branca”. Levanta questões de raça, gênero, classe e traz à tona o debate dos privilégios dos “light skin” dentro do movimento negro. Annie é uma negra magra de pele clara, o que a coloca como o padrão de beleza a ser alcançado e lhe dá alguns privilégios de fala. Assim como Booker T. Washington (Roger Guenveur Smith), líder dominante da comunidade afro-americana, também é representado com a pele clara e com postura (bastante) machista.
Movimento feminista
Como dá para perceber, o feminismo também está bem presente na série. Fica claro que C.J. Walker, apesar de inicialmente apoiar a iniciativa de Sarah, não suporta a ideia de viver à sombra da esposa e de não ter o poder de decisão na empresa. Em um momento ele chega a atrapalhar uma reunião e a reclamar por ser conhecido como “marido da Madame C.J. Walker”. Mas não se incomoda dos produtos levarem seu nome e da esposa não ser mais conhecida como “Sarah” e, sim, como “madame C.J. Walker”.
É bonito e inspirador o quão feminista Sarah é. Ela quer que as mulheres negras se sintam representadas e bem consigo mesmas, sempre ressaltando que não devem querer atingir o padrão branco europeu de beleza. Porém, uma ressalva é necessária. A série peca por não explorar e trabalhar amizades femininas. Fora a relação de Sarah com a filha Lelia, as demais relações femininas acabam sendo marcadas pela inimizade, antagonismo e rivalidade. Toda a disputa com Annie, as vendedoras que eventualmente passam a perna em Sarah e os maiores apoiadores serem personagens masculinos são pontos que reforçam essa crítica. As únicas relações entre mulheres não regadas por valores negativos acabaram se transformando em romance.
Movimento queer
Outro ponto de relevante destaque na minissérie é a questão da sexualidade da filha de Sarah, Lelia. Ela, que começa com um rápido casamento com John (um homem bobo, lerdo e sem visão de futuro exceto pela ideia de um bar para músicos no meio do nada), acaba se envolvendo com duas mulheres no decorrer dos quatro episódios e passa a morar no Harlem, em NY - bairro conhecido pela liberdade nos costumes.
Ao ver a filha se envolvendo com uma mulher, Sarah se irrita e as duas protagonizam uma briga. “De que adianta todo o esforço que fiz se você não vai ter filhos?”. Mas, com a militância e o quê musical de finais felizes, Sarah percebe a infelicidade da filha e passa a aceitá-la, querendo apenas que seja feliz. *Final feliz*. A autora de “On Her Own Ground” não gostou muito de como a vida amorosa de Lelia foi retratada, já que seus relacionamentos com mulheres e a aceitação da mãe não foram eventos reais. Mas ela ressalta que Lelia de fato teve muitos amigos queer e que indícios apontam que o último relacionamento que teve foi com uma mulher - após três casamentos fracassados.
Self-made (wo)man
Mas a maior crítica é, na verdade, ao típico discurso estadunidense do “self-made man”. Apesar de não ser explícito, ele se faz presente nos quatro episódios e na mensagem deixada pela série. Sarah de fato não teria conseguido se tornar tão grande sem sua perseverança e força de vontade. Ela realmente teve que batalhar muito para ter voz em meio ao racismo e ao machismo de sua época. Mas não venham explorar a imagem de Madam C.J. Walker para perpetuar o discurso meritocrático, não. Nem todos e todas tiveram as mesmas chances e oportunidades que Sarah ou uma família para fornecer apoio financeiro e psicológico.
Como disse, “A vida e a história de Madam C.J. Walker” é a série para quem quer conhecer mais personalidades negras femininas inspiradoras. Recheada de representatividade e do talento de Octavia Spencer (que, como sempre, está com atuação impecável), a minissérie é uma boa escolha para quem quer passar tempo com algo leve para assistir na Netflix. E fica a dica também para pesquisar mais sobre a vida de Sarah Breedlove, ou Madam C.J. Walker.
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